Direitos Humanos| 19/03/2012 | Copyleft
No Uruguai, um ato de justiça – e de dignidade
No dia 16 de março, o presidente uruguaio José Mujica percorreu um quartel nos arredores de Montevidéu, o Batalhão 14, de péssima e justificada fama. Durante a última ditadura militar, que durou de 1973 a 1985, o Batalhão 14 foi um tenebroso centro de torturas. No dia 21 de março, o Estado uruguaio assumirá, pela primeira vez, diante das vítimas da ditadura, sua responsabilidade pelos crimes praticados. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno
Dia desses – a sexta-feira, 16 de março – o presidente uruguaio José Mujica percorreu um quartel nos arredores de Montevidéu, o Batalhão 14, de péssima e justificada fama. Durante a última ditadura militar, que durou de 1973 a 1985, o Batalhão 14 foi um tenebroso centro de torturas. Lá foi destroçado e fuzilado à queima-roupa Julio Castro, jornalista e professor, figura emblemática da educação e da imprensa uruguaia.
Os restos mortais de Julio Castro, que ao lado de Carlos Quijano fundou o lendário semanário ‘Marcha’, foram encontrados no dia 21 de outubro do ano passado. Agora, acharam uma nova ossada. Podem ser os restos de Maria Claudia García de Gelman, nora do poeta argentino Juan Gelman, talvez o mais importante do idioma espanhol nas Américas. A presença de Mujica no Batalhão 14 ressalta a importância que o caso tem não só no país, mas na América Latina toda.
Será preciso esperar até a primeira quinzena de abril para confirmar essa hipótese. Macarena Gelman, a filha de Maria Claudia e de Marcelo Gelman, saberá esperar. Ela espera há doze anos para saber onde foi enterrada sua mãe. O poeta Juan Gelman, aos 80 anos, também saberá esperar. Afinal, esperou 24 anos até encontrar, em 2000, a neta, um dos 500 bebês roubados durante os tempos negros da Operação Condor. Maria Cláudia e Marcelo foram presos em Buenos Aires, em agosto de 1976. Ele foi assassinato em seguida.
Ela tinha 19 anos, estava grávida, e foi levada para Montevidéu. Teve a filha no quartel onde estava seqüestrada.
Semanas depois, o bebê – Macarena – foi dado de presente a um delegado de polícia. E Maria Cláudia sumiu. Existe a certeza de que foi assassinada. Ninguém jamais encontrou seus restos. Macarena nunca soube a sua história, até ser encontrada pelo avô. Viveu 24 anos achando que era outra pessoa, e que outra era a sua família, outra a sua história.
A visita de Mujica ao Batalhão 14 é carregada de significados. Ele mesmo, um ex-militante Tupamaro, ficou onze anos preso pela ditadura. Dois desses anos foram passados numa espécie de poço, uma cela cavada debaixo da terra, onde ele mal tinha espaço para se mover. Dois anos proibido de falar com quem quer que fosse. De seus anos de prisioneiro, passou sete sem ler nada: a leitura estava proibida. Nem cartas, nem livros, nem jornais – nada.
Mujica fez parte do ‘grupo dos nove’. Eram tupamaros feitos reféns pela ditadura: cada vez que houvesse alguma ação da guerrilha que ameaçasse a ‘segurança nacional’, um deles seria fuzilado. Mujica conhece por dentro essas histórias de terror. Sobreviveu a tudo e virou presidente, eleito pela maioria dos uruguaios.
Mas não só por isso a visita a esse lugar sinistro e nefasto foi significativa. É que ela aconteceu cinco dias antes da quarta-feira, dia 21 de março. Nesse dia, e pela primeira vez, o Estado uruguaio, diante das vítimas da ditadura – os que foram presos ilegalmente, os que foram torturados – e das famílias dos assassinados, assume sua responsabilidade pelos crimes praticados. Não se trata exatamente de um pedido de perdão, mas de reconhecer que o Estado foi responsável pela barbárie. Mais importante, porém, é que desta forma o governo assume a obrigação de investigar todos os crimes da ditadura militar, e punir os culpados.
Tudo isso é decorrência de uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Uruguai pelo desaparecimento de Maria Claudia García Gelman, depois de uma árdua, prolongada e às vezes desesperada batalha travada pelo poeta Juan Gelman. A mesma sentença condenou o governo uruguaio a realizar ‘um ato político de reconhecimento de responsabilidade internacional’ sobre todos os crimes cometidos enquanto durou o terrorismo de Estado..
José Mujica é conhecido pelo seu jeito bonachão, desajeitado, e por falar o que lhe vem à cabeça. Diante do caso de Maria Claudia García Gelman, porém, ele vem sendo extremamente comedido. Diz que com o ato de reconhecimento de responsabilidade pelo assassinato e desaparecimento da nora do poeta estará cumprindo, ‘de boa fé, uma decisão que devemos acatar’.
Ele sabe que é muito mais do que isso. Afinal, foi depois da sentença da Corte Interamericana de Justiça que, em outubro do ano passado, o Congresso uruguaio anulou uma lei espúria de anistia. Na sentença, a Corte afirma que anistiar os criminosos da ditadura é incompatível com a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, assinada pelo Uruguai. Mujica disse que acatar a sentença é o mínimo que pode fazer um país que assinou essa convenção. Era acatar, ou não ser digno.
O comandante-chefe do Exército, general Pedro Aguerre, disse que se for convidado, estará presente no ato público encabeçado pelo presidente José Mujica. “Não vejo razão alguma para não responder de forma correta a um convite”, disse ele. E recordou quem são os seus chefes: o presidente da República e o ministro da Defesa, a quem deve obediência e respeito.
Enquanto isso, em um país vizinho ao Uruguai...
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