Para os padres Jaime Crowe, no Jardim Ângela, periferia de São Paulo, Edilberto Sena, na periferia de Santarém, Pará, e Luis Tonetto, no semi-árido baiano da região de Juazeiro, a realidade de violência e pobreza de seus paroquianos tem muito mais peso sobre a prática pastoral do que as premissas de Bento XVI.
Verena Glass - Carta Maior
SÃO PAULO - Jardim Ângela, bairro da zona sul de São Paulo, já foi considerado pela ONU o “lugar mais violento do mundo” em função da taxa anual de 116,23 assassinatos para cada 100 mil habitantes em 2000. Hoje, muito em função do trabalho do pároco James Crowe – ou padre Jaime, como é conhecido, o título não é mais do bairro.
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Irlandês de nascença, padre Jaime chegou ao Brasil em 1969 a assumiu a paróquia Santos Mártires e seus 40 mil paroquianos, no Ângela, em 1986. Desde então, tem coordenado uma série de projetos de inclusão social que mudaram visivelmente a situação de violência na região, valendo-lhe o Prêmio USP de Direitos Humanos em 2005.
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Reunido esta semana em Campinas com um grupo de religiosos de toda a América Latina para elaborar um documento sobre dependência química, que deverá ser entregue ao Papa nesta sexta (11), padre Jaime não está entre os entusiastas incondicionais de Bento XVI; principalmente em função de seus posicionamentos conservadores pouco condizentes com a realidade da periferia paulistana. “O Papa é sinal de unidade [da Igreja Católica], mas não temos que baixar a cabeça e dizer amém para tudo que ele fala. O Papa não conhece o Jardim Ângela...”, pondera.
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Esta também é a posição do padre Edilberto Sena, cuja paróquia, na periferia de Santarém, no Pará, é responsável por um “rebanho” de cerca de 2,5 mil pessoas. Santarém, e principalmente sua periferia, tem se tornado um pólo de pobreza e conflitos com a crescente ofensiva de grandes plantadores de soja sobre a floresta amazônica; tanto por conta da expulsão dos pequenos agricultores do campo, que tem inchado os bolsões de miséria da cidade, quanto pelo embate entre os sojeiros e os movimentos sociais que lutam pela preservação da floresta.
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Padre Edilberto é um dos integrantes da lista de religiosos ameaçados de morte no Pará – que inclui ainda o bispo da prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler, frei Henri des Roziers, de Xinguara, padre José Amaro de Souza, de Anapu, e padre José Boeing, também de Santarém. Diretor da Radio Rural do município, Edilberto é um dos que encabeça a briga contra sojeiros, grileiros e madeireiros ilegais na região, o que lhe valeu no ano passado, além da ameaça de morte, o convite para receber na Índia o prêmio Mahatma Gandhi por sua luta contra a devastação da Amazônia.
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Tanto para Jaime quanto para Edilberto, a concepção européia de Igreja de Joseph Ratzinger tem uma evidente distância da realidade de suas paróquias, o que se evidencia em suas práticas pastorais cotidianas. Para eles, o segundo casamento de pessoas divorciadas, condenado por Bento XVI em março passado, por exemplo, nunca foi um problema espiritual. “Se existe uma união estável aqui, damos graças a Deus. No Jardim Ângela, 70% das famílias são incompletas, é uma mãe com três, quatro filhos de pais diferentes. O segundo casamento não é um tema para nós”, diz Jaime.
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“Essa regra não é bíblica ou evangélica. Não me sinto impedido pelo Papa, se um casal de segundo casamento, que está integrado à nossa comunidade, quiser comungar. Nós, que trabalhamos com o povo, vivemos muitas situações imprevistas. Nesse sentido, usamos o princípio da epiquéia [o eventual, oportuno e prudente afastamento da letra da lei] do direito canônico, que autoriza aquele que está na base a julgar o que é melhor”, acrescenta Edilberto.
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Segundo ele, o padre que lida com comunidades em situação de fragilidade social tem de usar acima de tudo o bom senso. “Aqui, por exemplo, a sexualidade entra muito cedo na vida dos jovens, e não é o padre que vai dizer que não pode usar camisinha. O problema maior não é a camisinha, são crianças gestando crianças; é uma questão de saúde pública”, afirma. E conclui: “a Igreja tem o papel de zelar pela presença cristã no mundo, e cria sua moral para isso como um guia de comportamento. Mas pessoalmente, com 35 anos como padre, tiro minha responsabilidade moral da fé e da confiança na figura de Jesus Cristo e no evangelho. Acredito que o Papa tenha suas regras básicas, mas a prática pastoral tem de ser adaptada à realidade local”.
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Já padre Jaime se diz preocupado com uma rigidez excessiva de Bento XVI, uma vez que a função da Igreja é a de acolher e incluir. “Jesus acolheu a mulher em adultério; que atirasse a primeira pedra quem não tivesse pecado. O povo [da periferia] já é tão excluído e rejeitado socialmente... se a Igreja repetir este comportamento não estará cumprindo o evangelho”.
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Teologia da Libertação
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Em Senhor do Bonfim no sertão da Bahia, região de semi-árido entre Feira de Santana e Juazeiro, os problemas da comunidade do padre Luiz Tonetto não são tanto a violência descontrolada das periferias urbanas ou da grilagem de terras. É a fome dos pequenos agricultores, a falta de perspectiva, o desemprego, problemas estruturais de um campo oligárquico que mantém imutáveis as diferenças e injustiças sociais, diz.
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Em municípios como Umburana e Mirangaba, parte da base de sua paróquia, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um dos mais baixos do país e a população é paupérrima. “Mas aqui a pobreza se origina da concentração de terra, que também dá origem aos trabalhadores escravos aliciados no Oeste da Bahia, em Goiás e até em São Paulo; e ao trabalho infantil na produção do sisal”, conta padre Luiz. Na sua região, complementa, casamento gay ou aborto não são uma questão importante. A preocupação é mesmo a mudança das condições sociais do povo, a partir de suas demandas e com a sua participação.
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Claramente fundamentada na Teologia da Libertação, a prática pastoral dos padres Jaime, Edilberto e Luis segue uma linha que não tem sido vista com bons olhos por João Paulo II, e agora sofre ataques também de Bento XVI – que, ainda em 1984, enquanto Cardeal Ratzinger, se posicionou duramente contra ela. .
“Aquele posicionamento criou um grande desconforto para nós e gerou um esfriamento do trabalho pastoral”, afirma Luis. Já a recente condenação do teólogo salvadorenho Jon Sobrino, por suas proposições não estarem “em conformidade com a doutrina da Igreja", foi duramente criticada e considerada pelos três padres um ato de intolerância e autoritarismo. Agora, pondera Luis, o Papa traz uma discussão espiritual que não olha as pragas da vida humana, fortalecendo uma tendência dos tempos de neoliberalismo que leva à busca da espiritualidade como mercadoria, para uma satisfação individual. “Há uma preocupação muito grande em cumprir pequenas leis e regras, e não se tem mais o senso pastoral. Está se criando um ambiente que dificulta o trabalho que transforma a sociedade”.
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Edilberto é mais enfático na crítica à posição de Bento XVI sobre a Teologia da Libertação. “É uma visão vesga e européia de um patrimônio teológico e ideológico da Igreja. Para ela só serve a teologia de São Thomas de Aquino. Neste Papa vejo uma concepção teológica inflexível, que não aceita as diferentes relações com Deus. Ignorar que a América Latina vive a desigualdade de forma aguda? A Igreja deveria se perguntar como fazer a vontade de Deus nessa realidade”.
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Questionados se também comungavam da “febre de ver o papa”, os padres Edilberto e Luis desconversaram. “Estou muito ocupado aqui na Radio Rural”, brinca Edilberto. “Eu não tenho todo este afeto por ele. Rezo sempre pela unidade da Igreja, mas não tenho toda essa ânsia de ver o Papa”, diz Luis.
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Padre Jaime será o único a encontrar o Pontífice nesta sexta, em Aparecida. Para entregar um documento.
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