A extrema-direita brasileira mora nos pampas
Artigo escrito por Flavio Koutzii em agosto de 2003
"Albert Camus observou certa vez, com razão, que denominar incorretamente alguma coisa aumenta o grau de infelicidade no mundo. Analogamente, pode-se dizer, com absoluta segurança, que a errônea qualificação jurídica de um fato aumenta o grau de injustiça no mundo" (Fábio Konder Comparato)
Se fosse possível minimizar a tristeza pelo recente cancelamento, via Judiciário, da desapropriação dos 13 mil hectares em São Gabriel para fins de reforma agrária, caberia creditar à visibilidade do MST o papel de protagonista, hoje, na luta por justiça social e melhor distribuição de renda no Brasil. O governo Lula não tem medo dos que protestam. O foco na política financeira, no risco Brasil e na cotação do dólar por vezes nos faz esquecer que depois de muito tempo, depois de décadas e décadas, um ministro da Justiça e um ministro da Reforma Agrária finalmente reconhecem que mobilizações como as do MST não são caso de polícia, mas de políticas públicas. Prova prática disso é que, no final de maio, passados cinco meses da posse de Lula, o MST já firmara parcerias para projetos em dez pastas do governo federal: Direitos Humanos, Saúde, Segurança Alimentar, Cultura, Meio Ambiente, Educação, Esportes, Cidades, Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Agrário.
Aliás, o próprio Jornal Nacional, sem abdicar do tom de proteção à propriedade privada, abriu brechas para a humanização da imagem quase unilateralmente associada às invasões de terra. Nos telejornais seguintes ao polêmico dia em que o presidente do Brasil vestiu o boné vermelho, houve reportagens lembrando que Lula já cobriu a cabeça com logotipos de dezenas de associações de classe, entrevistas com jovens assentados ressaltaram a produtividade da terra e a esperança no trabalho e também a futura universidade do MST, que está sendo erguida há três anos em Guararema, a 80 km da capital paulista, foi destacada pelo Jornal Nacional em julho.
A agenda de um poder público gigantesco interfere desde sempre na agenda dos principais órgãos da mídia. Se um governo de esquerda instalado em Brasília agora modifica o histórico discurso de pura condenação ao MST, é possível, e será saudável, que essa nova abordagem dos protestos sociais vá sensibilizando aos poucos os olhos e ouvidos da população. Diante desse quadro de novos tempos, impressiona que no Rio Grande do Sul uma parte barulhenta dos produtores rurais retroceda aos tempos da barbárie na hora de manifestar sua contrariedade com a reforma agrária.
A marcha do MST que saiu dia 10 de junho de Pântano Grande rumo à cidade de São Gabriel mostrou que a extrema-direita brasileira está viva e organizada nos pampas, exibindo-se nos métodos mais espúrios da violência verbal e física. Em panfleto anônimo, os produtores rurais chegaram a proclamar a superioridade da raça dos cidadãos gabrielenses e sugeriram o extermínio (por fogo) das centenas de sem-terra que se aproximavam, comparando-os a uma praga de ratos. Partiu da elite econômica gaúcha a afronta à Constituição que impôs barreiras e desvios na longa caminhada das famílias de agricultores, espichando-a por mais 200 quilômetros além dos 180 quilômetros do trajeto de saída e chegada.
Além da tortura física que levou à exaustão os marchantes em pleno inverno gaúcho, os produtores rurais lançaram mão da tortura mental, infernizando as noites de sono dos sem-terra com tiros e estampidos de máquinas destinadas a espantar marrecões. Na madrugada do dia 14 de agosto, horas antes de o Supremo Tribunal Federal cancelar por oito votos a dois a desapropriação da fazenda, a casa da vereadora petista Sandra Xarão, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Gabriel, foi alvejada por três tiros. E no último sábado um ônibus de estudantes universitários solidários à reforma agrária foi apedrejado diante do quartel-general dos ruralistas.
Protegida e eventualmente incentivada por rádios e jornais do Interior do Estado, a extrema-direita gaúcha parece não ver limites na sua truculência. O prefeito de São Gabriel privatizou a praça da cidade por decreto, proibindo manifestações que cobrariam dos poderes públicos o seu dever de realizar a reforma agrária. E ainda determinou que os sem-terra fossem discriminados no atendimento de saúde do município, para depois poder cobrar os custos da União ou do Estado.
O dever constitucional de realizar a reforma agrária foi recentemente ressaltado por um importante grupo de 17 advogados, seis juízes, nove procuradores e quatro promotores de Justiça, que enviaram um manifesto à direção nacional do MST fazendo a defesa jurídica das atividades do movimento. Justamente a parte do Brasil que se julga melhor alfabetizada, o Sul Maravilha, insiste em distorcer os sentidos das palavras e ainda qualifica os integrantes do MST como criminosos que agem em quadrilha ou bando. Num movimento semelhante ao que repele a visão dos sem-terra como incômodo reconhecimento aos seus antepassados imigrantes do século 19, sem dinheiro e sem caminhonetes importadas, os ruralistas do século 21 estranhamente não reconhecem a si como bando ou quadrilha no momento em que se armam para reprimir, interrompem o trânsito em pontes ou disparam tiros contra residências habitadas. Violentos, baderneiros, os fora-da-lei são sempre os outros para a extrema-direita.
O processo de desapropriação do latifúndio em São Gabriel, cuja área é superior à de dezenas de municípios gaúchos, foi transtornado por uma desobediência civil inicial de parte dos ruralistas. O Incra notificou o proprietário e marcou a vistoria para 4 e 5 de dezembro de 2001, mas o bando de produtores rurais bloqueou a entrada dos fiscais na porteira da fazenda. A Justiça Federal reconheceu o abuso do direito de defesa da propriedade e concedeu poder de polícia administrativa para o Incra, cujos técnicos finalmente entraram na fazenda em 14 e 15 de dezembro. Foi esse tumulto na origem, provocado pelos ruralistas, que esteve em julgamento no STF na semana passada, e não a improdutividade da área e seu uso para fins de reforma agrária. Segundo o proprietário, não houve notificação para a segunda vistoria. Segundo uma interpretação da Lei Agrária 8.629, de 1993, que poderia ter sido considerada pelos juízes, há dispensa de segunda notificação quando o Incra é obrigado a exercer poder de polícia.
Realizado poucos dias depois de uma ameaça de greve por parte do Judiciário caso a reforma da Previdência mexesse demais nos seus direitos de classe adquiridos, o julgamento da primeira grande desapropriação de terras do governo Lula evidenciou um brutal jogo de forças pró e contra a mudança do estado das coisas no Brasil que vai se prolongar por todo o mandato.
Não é, mas se fosse possível amenizar a dor das famílias dos sem-terra que por dois meses marcharam pacificamente se insurgindo contra todos os tipos de violência, valeria lembrar que a reação odiosa dos ruralistas gaúchos é exagerada porque diretamente proporcional à resistência de Hércules do MST gaúcho. Se eram cerca de 800 os marchantes e no último sábado a manifestação pró-reforma agrária em São Gabriel reuniu mais de 3.000 pessoas, sindicalistas, simpatizantes, vizinhos e estudantes que foram se solidarizando com a causa, contra centenas de advertências de tensão na área, então a força de cada sem-terra foi rapidamente multiplicada por três. O ônibus de universitários alvejado por ruralistas levou uma corajosa academia até o palco do conflito, e é produtivo que teóricos e intelectuais em formação vejam de perto os calos, o banho de chuva e lama, o desespero e os ossos moídos dos que lutam pela melhor distribuição de terras no país.
Em geral os que escrevem sobre a importância da reforma agrária medem a dureza do inverno sulista pelo movimento do ponteiro no ar-condicionado da sala, enquanto os sem-terra medem os estragos do frio pela violência do vento entrando pelas paredes de lona e pelas crianças e adultos da família que estão desabando com pneumonia, quando ainda faltavam 80 quilômetros e uma decisão do Supremo pela frente. Que eles continuem resistindo ao massacre moral na mira das espingardas dos ruralistas, sendo diariamente achincalhados como bêbados, vagabundos e comunistas, sem poder revidar, isso é de uma coragem que nem as fotos de Sebastião Salgado nem os cumprimentos de Noam Chomsky vão conseguir, um dia, traduzir.
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