Juízes pela Democracia: 'ao ordenado fluxo do trânsito foi dada importância maior que às pessoas'
Da Redação
A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota nesta sexta-feira (16) expressando repúdio e indignação com o modo como a Brigada Militar, na última quarta-feira, executou ordem de despejo, emitida pela justiça estadual para a Ocupação Lanceiros Negros, em prédio pertencente ao Estado do Rio Grande do Sul. "Ao patrimônio público e ao ordenado fluxo do trânsito foi conferida importância e preocupação maiores que às demandas fundamentais de duas centenas de pessoas", diz o texto que destaca ainda o fato de que as pessoas que até então viviam na Lanceiros "recorreram à ocupação em lugar central, num imóvel há muito sem cumprir sua função social, como desdobramento inevitável de políticas urbanas antidemocráticas, discriminatórias e marginalizantes, mas também, vários deles, para refugiar-se do tráfico que escraviza o povo da periferia ou para escapar da vulnerabilidade das ruas e pontes".
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Confira a nota na íntegra:
A lança do Estado contra a civilização
Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, por meio do seu núcleo do Rio Grande do Sul, vem expressar REPÚDIO e INDIGNAÇÃO com o modo como a Brigada Militar, na última quarta-feira, executou ordem de despejo, emitida pela justiça estadual para a Ocupação Lanceiros Negros, em prédio pertencente ao Estado do RGS, na cidade de Porto Alegre.
Servindo-se dos seus mais extremos e rigorosos instrumentos de repressão, operados por um enorme contingente de policiais, atuou com injustificada urgência, mais intensa que o comando recebido.
Ao patrimônio público e ao ordenado fluxo do trânsito foi conferida importância e preocupação maiores que às demandas fundamentais de duas centenas de pessoas.
Tendo em conta que o imóvel estava sem destinação pública há mais de uma décadas e que a ocupação datava de ao menos dois anos, era absolutamente desnecessário que a ação se desenvolvesse em uma noite fria, que a negociação para desocupação tenha sido meramente formal, abruptamente seguida do uso exagerado da força, violentando direitos humanos de cidadão das mais diversas faixas etárias.
A despreparada operação abusou do desrespeito à ordem constitucional ainda em vigor (pelo menos como regra escrita), pois a ação de realocação de pessoas, desconsiderou as peculiaridades que legislações especiais (Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso e do Deficiente) ordenam sejam observadas.
O lamentável e reprovável evento é mais uma evidente expressão do processo de reversão civilizatória do Estado brasileiro, inaugurada a partir do recente golpe imposto ao sufrágio popular, o qual se aprofunda cotidianamente, com ações concretas, desconstitutivas dos alicerces consagrados na Constituição Federal.
O mesmo Estado que não tem capacidade de prover o direito constitucional de moradia, não só não reconhece a legitimidade do direito de luta da cidadania, criminalizando-o, como também, através de sua estrutura de segurança faz com que ela apenas preserve conceitual patrimônio, em detrimento da garantia fundamental a uma vida minimamente digna.
Para ter uma vida digna, imprescindível que haja um teto, o que, indiscutivelmente, tem de contemplar um abrigo para dormir, comer, cuidar dos filhos, tratar as enfermidades, medos e fragilidades, um lugar para amar, sonhar e sofrer – um espaço de referência pessoal e de resguardo da privacidade, um ninho para alimentar a esperança.
Ademais disso, é essencial não esquecer que as famílias despejadas são gente com a mesma dimensão valorativa que qualquer outra, são pessoas trabalhadoras. Eles recorreram à ocupação em lugar central, num imóvel há muito sem cumprir sua função social, como desdobramento inevitável de políticas urbanas antidemocráticas, discriminatórias e marginalizantes, mas também, vários deles, para refugiar-se do tráfico que escraviza o povo da periferia ou para escapar da vulnerabilidade das ruas e pontes.
A promoção de tamanho episódio pelo Estado e sua execução por uma estrutura que deveria servir ao público (e não com ênfase à defesa do patrimônio, mesmo que do Estado), revela uma completa subversão do ideário constitucional, exatamente por aqueles que têm o dever de preservá-lo e promovê-lo em todas as suas ações.
Por fim, como resultado do uso da lança estatal, as dezenas de famílias que viviam no prédio público, que antes para nada servia, agora estão – novamente – sem teto. Já o frio amontoado de ferro e cimento está agora desocupado, mas nenhuma utilidade acrescentando ao patrimônio do Estado, que restou com seu passivo de políticas públicas ainda muito maior, além da estrutura pública de uma de suas polícias ainda mais desgastada – humana e estruturalmente.
Resposta da Ocupação Lanceiros Negros à nota do governo Sartori
O Movimento de Lutas nos Bairros Vilas e Favelas – MLB, em nome das pessoas despejadas da Ocupação Lanceiros Negros, esclarece sobre a nota assinada pelo Chefe da Casa Civil, Fábio Branco, publicada no dia 15/06/2017, às 19h53.
1 – O Chefe da Casa Civil, em um ano e sete meses de Ocupação, nunca se dispôs a encontrar as famílias para entender a sua história e escutar as suas demandas;
2 – O Governo do Estado nunca apresentou alternativas de habitação para as famílias, apenas exigindo a imediata desocupação do imóvel que deixou sem uso por mais de 10 (dez) anos, sem qualquer perspectiva, tendo uma Procuradora do Estado manifestado, em audiência no CEJUSC, que a sua prioridade era levar os milhares de imóveis vazios do Estado a leilão, para a construção de presídios. A judicialização desse grave problema social foi provocada pela Procuradoria Geral do Estado, sem qualquer tentativa prévia de diálogo, dois dias após o início da Ocupação. Até a suspensão da primeira determinação de reintegração de posse, na noite fria do dia 23 de maio de 2016, nenhuma mesa de diálogo havia ocorrido e, após a instauração das tentativas de conciliação judicial, a única oferta apresentada, desde o início, foi de caminhões para a retirada dos pertences. Isso não é dialogar;
3 – Questionado pela imprensa, na tarde de 15/06/2017, sobre o episódio da desocupação e o déficit habitacional, o Secretário de Obras, Saneamento e Habitação do RS respondeu não estar "inteirado do assunto", demonstrando um descaso inaceitável por parte do Governo diante desse grave problema; essa indiferença não é acidental, e sim política e ideológica;
4 – Política e ideológica é a escolha do Governador José Ivo Sartori de agilizar o despejo de mais de 70 (setenta) famílias, de um imóvel abandonado há mais de 10 (dez) anos, mas não providenciar a cobrança de 76 (setenta e seis) milhões de reais devidos pelo Grupo JBS, o qual, coincidentemente, doou mais de dois milhões e meio de reais à campanha do então candidato e hoje Governador. A economia que o Governo alega que fará será de R$ 60.000,00 mensais. Com a cobrança dessa única dívida desse doador de campanha, poderia o Governo Sartori permitir que as famílias permanecessem por mais 1.266 meses ali, enquanto encaminhasse uma política efetiva de realocação dessas pessoas em um imóvel digno, e uma solução para todas as pessoas afetadas pelo déficit habitacional no estado do RS. A opção do Governador, é claro, foi outra;
5 – Política e ideológica é a decisão do Governador Sartori de orientar a atuação da Brigada Militar à repressão de famílias que buscam, simplesmente, uma moradia digna, enquanto o Estado do RS é assolado por uma crise sem precedentes na Segurança Pública. Não à toa, enquanto as famílias ainda buscam um local para residir, na madrugada dessa sexta-feira, moradores do Vale do Rio Pardo viveram momentos de terror enquanto um grupo de cerca de 15 (quinze) pessoas explodia três agências bancárias. Não se pode dissociar isso da opção do Governo Sartori em direcionar a atuação da Brigada para outros fins que não a segurança pública, seu dever constitucional;
6 – O Governo do Estado é diretamente responsável pela escolha deliberada de contrariar a Recomendação nº 2/2016, do Conselho Estadual de Direitos Humanos, e adotar os meios mais danosos para o cumprimento da ordem judicial, executando-a em uma noite fria, jogando as famílias, com crianças e idosos, na rua, ou oferecendo, por apenas 24h, um ginásio sem estrutura mínima;
7 – Também foi uma escolha deliberada, de caráter político e ideológico, usar gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, balas de borracha e prisões para desarticular o apoio democrático que as famílias recebiam na iminência da desocupação;
8 – É lamentável o Governo falar que vivemos em tempos de justiça, válida para todos, quando deixou famílias, com mulheres e crianças, em situação de vulnerabilidade, sem moradia e, consequentemente, sem garantia de acesso à educação, saúde, entre outros direitos fundamentais. O Movimento convoca, portanto, o Poder Público Estadual a assumir a sua responsabilidade e a adotar medidas concretas para resolver o déficit habitacional, garantindo, de imediato, assentamento digno para as famílias da Ocupação Lanceiros Negros.
Porto Alegre – RS, 16 de junho de 2017. Ocupação Lanceiros Negros
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