O caso do IPTU em São Paulo e a formação de opinião pública
Uma tentativa de tirar o debate de baixo dos escombros restantes da demolição do projeto promovida pelos impérios da comunicação em massa.
Serra Pilheira (*), originalmente publicado em Vírus Planetário
Esta não será uma tentativa de explanação aos meninos que saíram às ruas “pela revogação do aumento” (do IPTU, desta vez, porém) sobre como em sua iniciativa de contestar o aumento baseados em seu repúdio à simples existência de um Estado, eles estão dando suporte à mídia corporativista que faz a pura oposição política à redistribuição de renda pretendida pela lei em questão. A preocupação será maior sobre a ofensiva terrorista de desinformação midiática que tem conseguido fabricar, até mesmo dentre os beneficiados pela lei – como os 33% que ficariam isentos de pagar o tributo ou os 8% que teriam sua contribuição reduzida no próximo ano, por exemplo –, um consentimento público de que o projeto é fundamentalmente injusto ou imoral.
Não se trata tampouco de fazer uma defesa franca ao prefeito Fernando Haddad (PT), à sua equipe, ou ao seu plano para a capital paulista – ele deve estar muito bem assessorado neste sentido. Por fim, será mais uma tentativa de tirar o debate de baixo dos escombros restantes da demolição do projeto promovida pelos impérios da comunicação em massa que querem ditar a política pública da cidade.
O Projeto de Lei 711/2013 foi apresentado à Câmara no início de outubro e três semanas depois foi objeto de audiência pública para discussão deste entre outros temas correlatos, como a dotação orçamentária para o próximo exercício e o Plano Plurianual (PPA) 2014-2017. A proposta encaminhada pela Prefeitura previa o incremento das receitas provenientes do IPTU em 28%, para fazer frente aos investimentos pretendidos em seu planejamento, como a construção de hospitais em Parelheiros, Brasilândia e Vila Matilde, por exemplo, assim como obras de habitação, saneamento e mobilidade que tem contrapartida do governo federal. No dia seguinte à audiência (24) o projeto foi aprovado em primeira votação com algumas alterações, onde o aumento ficou aquém das intenções do projeto inicial – reduzindo também a previsão de arrecadação adicional para 18% –, mas criando emendas para isentar aposentados na faixa de renda inferior à três salários mínimos, e criando mecanismos de desconto para aqueles com renda inferior a cinco mínimos. E na semana seguinte o projeto foi aprovado em segunda votação e devolvido ao Executivo para sanção do prefeito Haddad.
Desde então uma ação civil pública impetrada pelo promotor de Habitação e Urbanismo do Ministério Público, Maurício Ribeiro Lopes, e acolhida pelo juiz da 7ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, Emílio Migliano Neto – fazendo questão de dar nome aos bois –, apontou ilegalidades nos procedimentos adotados pelo Parlamento por ocasião da sessão extraordinária que aprovou o PL. Vestindo-se do aparato jurídico que legitima o poder das classes apossadas do Poder Judiciário, os magistrados arbitrariamente colocam entraves ao andamento do projeto das instâncias governamentais de representação popular.
Argumenta o promotor que tal votação não havia sido convocada para a Ordem do Dia, conforme exigido pelo regimento interno da casa, tendo a publicação sido promulgada no Diário Oficial apenas no dia seguinte (30). Por nota, a Presidência da Casa informou que seguiu “rigorosamente todos os preceitos regimentais” e criticou a atuação do MP [1].
É importante frisar que essa batalha judicial não entrará no âmbito do conteúdo da lei. Nem de sua motivação, já que a lei que instituiu o último reajuste em 2009 previa que a partir de 2013 fosse dado o início ao reajuste bienal das alíquotas, que conforme a nova proposta passariam a ser quadrienais. A Prefeitura, alegando que o projeto beneficia a metade mais pobre da população, recorreu à decisão e aguarda um pronunciamento do Judiciário.
A proposta de Haddad é baseada em dois princípios fundamentais: o da diferenciação, onde um imóvel de uso não-residencial deve pagar mais do que o de uso residencial; e o da progressividade, onde o imóvel de valor venal maior deve pagar proporcionalmente mais também. “A gente vai recompor a base de cálculo e entende que, com justiça social e com captura de valorização, vai refletir melhor a realidade da cidade” afirma o secretário de Finanças, Marcos Cruz [2], ressaltando que o projeto deverá extrair valor a partir de regiões que receberam investimentos públicos nas gestões anteriores e que sofreram valorização no mercado imobiliário, sem que a administração pública tivesse nenhuma contrapartida. “É preciso haver uma capitalização de parte dessa valorização imobiliária, porque essa valorização veio do investimento geral da sociedade. Não é justo que essa apropriação se dê de forma individual” [3], afirma a urbanista Ermínia Maricato, professora da FAU-USP por 35 anos.
“De janeiro de 2009 a outubro deste ano, houve valorização de 169,5% no mercado imobiliário na cidade de São Paulo, segundo o índice da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em parceria com a ZAP Imóveis.” [4] Nos cálculos da prefeitura esse percentual é mais modesto, mas ainda absurdamente alto, da ordem de 119%. “O reajuste médio na cidade chega a 10,7% para imóveis residenciais — com teto de até 20% de reajuste para 2014 e 10% nos anos seguintes — e 31% para comerciais — com teto de até 35% de reajuste para 2014 e 20% nos anos seguintes.” [4] O projeto da prefeitura estabelece um reajuste máximo de 64% escalonado pelos próximos três anos, seguindo sempre o princípio básico da diferenciação e progressividade.
Para que as distorções proporcionais óbvias nos cálculos de valor venal dos imóveis – sobre o qual incide a alíquota do imposto –, possam ser minimizadas, o texto aprovado pelos vereadores altera a Planta Genérica de Valores (PGV), criando três faixas territoriais de diferenciação. A proposta é um mecanismo para que uma casa classificada como de médio padrão no Campo Limpo pague um imposto inferior à mesma casa construída em Moema, por conta da zona fiscal em que estão situadas.
A delimitação destes territórios claramente visa reduzir as alíquotas nos bairros periféricos, onde há carência de infraestrutura e investimento, e aumentar nos bairros mais valorizados onde a infraestrutura já foi instalada e os serviços operam regularmente. Os maiores reajustes serão aplicados na região central da cidade, chamada Zona Fiscal 1, compreendendo a área da avenida Paulista, Consolação, Cambuci, Sé, Cidade Jardim, além de Santana e Anália Franco. A Zona Fiscal 3, que compreende os extremos sul, norte e leste da cidade, além de uma parte do distrito do Butantã, terá reajustes menores, congelamentos e reduções. Esta proposta guarda coerência com o projeto de campanha eleitoral do prefeito que busca descentralizar atividades econômicas e fazer os empregos rumarem para as regiões periféricas – com efeitos positivos sobre a qualidade de vida e o já saturado sistema de transporte público e privado, diga-se de passagem.
“Outros 3,6 milhões de moradores da capital teriam reajuste de no máximo 5,7%, abaixo da estimativa de inflação oficial, em torno de 6%. [...] Nos demais casos, 1,4 milhão de habitantes, em 14 distritos, teriam reajuste entre 5% e 10%. Outros 740 mil teriam IPTU entre 10% e 15% mais caro. E 1,8 milhões, que vivem na região central da cidade, teriam aumento acima de 15%. Os distritos de Parque do Carmo (-12,10%), Cidade Líder (-11,50%), Anhanguera (-10,00%), Vila Jacuí (-9,70%) e São Miguel (-9,10%) apresentam os maiores valores de redução no imposto. Na outra ponta estão Alto de Pinheiros (19,80%), Vila Mariana (19,80%), Sé (19,80%), República (19,70%), Jardim Paulista (19,50%) e Moema (19,50%), distritos mais ricos e centrais da cidade, que terão os reajustes maiores. O projeto também prevê a ampliação da isenção do imposto para imóveis com valores venais até R$ 160 mil. Atualmente este valor é de até R$ 90 mil. Além disso, imóveis entre R$ 120 mil e R$ 320mil de valor venal teriam uma escala de descontos decrescentes. Esse valores são individuais sobre os imóveis, pois consideram o tipo de construção em que a pessoa vive — casa ou prédio, número de cômodos, área edificada. Logo, um imóvel pequeno em uma região valorizada pode ter um reajuste inferior à média local.” [4]
Além de o IPTU ser o único imposto que permite à prefeitura exercer a sua governabilidade independentemente do crescimento econômico (como no caso do ISS), ele deve ser concebido a partir de sua função social. “Inegavelmente, dentre os muitos impostos existentes no Brasil, como está vinculado ao valor da propriedade, o IPTU é aquele tem uma característica mais redistributiva. O imóvel de maior valor deve pagar maior IPTU”, afirma o especialista em sociologia urbana Luiz Kohara [5].
O ICMS (estadual) que incide sobre um eletrodoméstico atinge os cidadãos da mesma forma, independentemente de seu poder aquisitivo ou faixa de renda. No caso do IPTU ele incide sobre a propriedade, e quanto mais cara a propriedade, mais caro o imposto. É claro que este tipo de ajuste causa reações negativas e grande repercussão na imprensa, e aqui está visivelmente mais exposto por tratar-se de um imposto que não é indireto, como o ICMS e a maior parte da injusta carga tributária brasileira, que todos pagam horizontalmente sem saber, mesmo dentro de um quadro social verticalizado. E pelo caráter de inversão da lógica da desigualdade social espacializada no solo urbano a proposta tem sido alvo da ofensiva midiática que culminou com o embargo do Judiciário, e tem sido engrossada por vozes como a da FIESP, Fecomercio, SEBRAE e associações de bairros nobres como AME Jardins, denotando o nítido antagonismo classista que o projeto desperta.
Não faltassem razões econômicas e mercadológicas para justificar o reajuste da arrecadação, é importante ressaltar a centralidade da decisão pelo enfrentamento político que está sendo proposto com esta medida. E é este o assunto que a grande imprensa não deixa transparecer quando anuncia chamadas alarmantes do tipo “proposta de aumento de imposto afeta 1,8 milhão de pessoas com aumentos de 20% na capital”, sem que se permita o envolvimento democrático da sociedade sobre como se quer arrecadar fundos e aplicar investimentos no espaço que é público. Mas esse público é constantemente expelido deste espaço, cada um para dentro de seus espaços privativos, onde são propositalmente mantidos alheios a tal debate pelos meios de comunicação oficiais ou oficiosos, como preferir. Nada melhor para o embate político do que a tomada do espaço público para se corrigir as injustiças sociais resultantes da má distribuição da riqueza pública e de infraestrutura da cidade. Não no sentido físico dos corpos nas ruas, mas no sentido da reflexão sobre como deve se dar o investimento público sobre o território urbano.
A arrecadação da forma como está proposta suscita este debate público que deve ser estendido para a participação conjunta da sociedade sobre a forma como serão gastos os recursos. A administração pública tem total autonomia para decidir como o dinheiro será gasto, já que os mecanismos de orçamento participativo, por exemplo, não tem efeito deliberativo, servindo apenas para que a população seja escutada, mas não necessariamente atendida. Desta forma, a progressividade do tributo e sua maior representatividade nas receitas orçamentárias isoladamente não podem garantir a redistribuição de renda pretendida pela proposta. Alguns setores alegam que a medida é motivada justamente pela especulação imobiliária e que aumentará o processo de periferização. E esta alegação pode se confirmar, caso os recursos captados da valorização imobiliária não sejam efetivamente aplicados nas áreas que sofrem com a degradação social e urbana decorrente deste tipo de processo, onde a expansão da cidade se dá pelas bordas, onde o solo é barato e não oferece nenhum dos benefícios que a cidade formal constituída oferece.
A questão de fundo aqui é sobre deixar às claras quais são os grupos de interesse que estão em desvantagem na divisão territorial antagônica da cidade, numa disputa tanto pelo espaço físico como por serviços, e atuar democraticamente para corrigir essas desvantagens, de modo que a convivência urbana possa dar-se mediante igualdade de condições. Algo completamente distinto do que está aí fora nesse momento.
[1] Rodrigo Gomes, da RBA, publicado 05/11/2013 17:07 http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/11/justica-pode-declarar-nula-a-votacao-que-aprovou-reajuste-do-iptu-em-sao-paulo-6877.html
[2] Gisele Brito, da RBA, publicado, 03/10/2013 19:02
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/10/para-prefeitura-de-sp-mudancas-na-cobranca-do-iptu-vao-aumentar-justica-na-cidade-8835.html
[3] Caio Sarack e Rodrigo Mendes, da Carta Maior, publicado 05/11/2013
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cidades/IPTU-e-importante-instrumento-de-justica-urbana-/38/29454
[4] Rodrigo Gomes, da RBA, publicado, 09/11/2013 12:00
http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/11/proposta-barrada-pela-justica-reduz-iptu-para-mais-da-metade-da-populacao-de-sao-paulo-1159.html
[5] Isadora Otoni, da Revista Forum, publicado 06/11/20132:43 pm
http://revistaforum.com.br/blog/2013/11/barrado-pela-justica-o-reajuste-de-iptu-causa-discordia/
*Serra Pilheira é leitor da Vírus Planetário.
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cidades/O-caso-do-IPTU-em-Sao-Paulo-e-a-formacao-de-opiniao-publica%0A/38/29640
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