Quando provou pela última vez o vestido de formatura, um modelo preto com estampa de rosas brancas, Maria de Oliveira Costa, a dona Benta, experimentou uma emoção adolescente aos 94 anos. Ao pedir os últimos ajustes no traje, sentiu o orgulho de realizar um sonho desejado há mais de oito décadas.
Impedida de estudar na infância e alfabetizada aos 85 anos, a moradora de Capão Bonito do Sul, no Norte, é a aluna mais velha do Estado a concluir o Ensino Médio este ano. No município, alçaram-na ao posto de celebridade pela persistência e superação.
Quando nasceu, em Vacaria, na Serra, foi chamada de Maria Benta, em homenagem à avó paterna. Apesar de parte do nome ter se perdido no registro, carregou o Benta como apelido pela vida afora, como herança de família.
Mais velha de oito irmãos, foi a primeira filha a trabalhar na propriedade da família — as tarefas na lavoura começaram aos 10 anos. Benta lembra, achando graça, que os Costa usavam arado de boi na terra e tinham pavor quando o instrumento enroscava em alguma raiz. Para suportar o sol forte, a família confeccionava os próprios chapéus, trançando a palha do trigo. A gurizada também costumava brincar na lavoura depois das queimadas. As crianças voltavam completamente sujas de carvão, para desalento da mãe, que chegava a lhes dar três banhos até vencer o encardido de braços e pernas.
Nos finais de semana, a sala de chão batido era adaptada para receber pequenos bailes. Uma das irmãs, que contraiu meningite na infância e ficou impossibilitada de andar, responsabilizava-se pela trilha sonora: com uma gaita de boca, botava o restante da turma para levantar poeira do piso, sempre em ritmo gauchesco. Atravessavam madrugadas dançando. O passatempo da meninice despertou o gosto tradicionalista cultivado até a maturidade. A filha Nadir Costa da Silva, 63 anos, que mora com a mãe, conta que a Semana Farroupilha é a data mais aguardada do ano por Benta:
— Era um pé de valsa. Hoje já não aguenta mais um baile inteiro, mas continua escutando em casa.
Durante a infância na Serra, o desejo de estudar floresceu. Entre os irmãos, apenas o mais velho dos rapazes frequentou o colégio. Por medo, ela nunca chegou a expressar diretamente a vontade ao pai, mas recorda com clareza quando soube o motivo que a afastou dos estudos. Certo dia, o professor do irmão foi visitar a família e perguntou o porquê de as meninas não estudarem. O pai de Benta respondeu temer que elas escrevessem cartas aos pretendentes.
— Nem tinha essa vontade, só queria aprender — lamenta.
Quando a mãe resolvia ajudar o irmão nos estudos, a menina costumava ficar escutando, escondida. Também tinha o hábito de pegar os cadernos dele e copiar o que via nas páginas, tamanho era o desejo de decifrar as letras.
Depois de casar, aos 28 anos — ainda muito nova, segundo ela —, seguiu trabalhando na lavoura, mas manteve a esperança de um dia aprender a ler. Quando se mudou para o Norte, há quatro décadas, dona Benta se dedicou a criar os quatro filhos: Valdir, Nadir, Vanir e a caçula Vaniza, que morreu com um ano e sete meses. Nadir conta que o xodó da mãe sempre foi Vanir.
— Ele teve paralisia com menos de um ano — lembra a filha, justificando o extremo cuidado da mãe.
Há 16 anos, Benta enfrentou a perda do companheiro, que não resistiu, aos 79 anos, a um infarto. Transformou o lamento em motivação para estudar. Aos 85 anos, teve a primeira experiência como aluna, durante a alfabetização. Do longo período em que ignorou o significado das letras, recorda a vergonha sentida ao ter de depender de quem nem sempre estava disposto a ajudar.
— Tinha gente que olhava estranho, sei que pensavam mal porque eu não tinha aprendido. Agora leio o que pegar na mão. É livro, é jornal, leio tudo — comenta, animada, acrescentando que poesia é a distração preferida.
Quatro anos depois, em 2007, dona Benta concluiu o Ensino Fundamental cursando o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Estadual Dr. Abelardo José Nacul. Um ano antes, teve de enfrentar a morte do filho Vanir.
— Ela sofreu tanto que nem caminhava mais. Achamos que não iria vencer — lembra Nadir.
Quando a mesma instituição abriu a primeira turma de Ensino Médio no turno da noite, a professora Neura Lucia Lima Fabiane, 46 anos, sabia exatamente onde buscar uma aluna:
— Fui visitá-la. Quando fiz o convite para voltar a estudar, ela aceitou na hora.
A oportunidade de concluir os estudos deu novo vigor à rotina. A aprendiz tardia era a alegria da turma de adultos na faixa dos 30 anos. Sentava sempre na primeira fila, no centro da sala, para ficar mais perto do quadro e ouvir melhor as explanações. Quando a mão cansava de copiar os conteúdos do quadro, uma colega tomava a caneta. Em um ritmo mais lento do que os demais, conseguia preencher até duas folhas.
— Não consigo escrever rápido — protestava quando a lição era ditada.
A colega Andréia Maria de Matos de Lima, 31 anos, conta que todos ajudavam como podiam. Benta era conhecida por ser estudiosa e “perguntadeira”. Em casa, retomava o conteúdo sentada no sofá. Como resultado do empenho diário, notas sempre acima da média cinco. Em matemática, a disciplina preferida, costumava tirar seis ou sete.
— Só não gostava quando o cálculo envolvia letra. Aí complicava — lembra.
Para o baile de formatura, no último sábado, dona Benta economizou R$ 10 por mês ao longo de 2011 e R$ 15 este ano. A formanda recebeu o diploma ao som de O Vento, do grupo Os Monarcas, um de seus favoritos. Da oradora, mereceu uma homenagem no discurso, definida como a “menina da turma”.
— Vou sentir saudade. Se fosse dar um conselho para os jovens, diria para que estudem o quanto conseguirem. O que aprendemos é uma herança que ninguém pode nos roubar.
Benta cogitou ser professora quando jovem e até pensou em frequentar curso superior. Não levou o plano adiante, convencida de que o corpo não suportaria, além das limitações da idade, outros quatro anos sobre os cadernos. Entreter-se não será problema: ao lado de seis netos e 13 bisnetos, vai dar continuidade às peças em crochê e bordado que colorem a casa. Não será professora, mas lições já deu de sobra.
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