Há algum tempo, o procurador de Justiça do Ministério Pública Estadual Gilberto Thums tem trabalhado para criminalizar e tornar ilegal o Movimento dos Trabalhadores Sem Terras. Apresentou, inclusive, um dossiê para conseguir atingir tal objetivo. Mas não foi muito feliz nessa "luta". Agora, o mesmo procurador conseguir que o Ministério Público do Rio Grande do Sul determinasse o fechamento das escolas itinerantes que o MST criou há 13 anos e, desde então, propicia às crianças acampadas uma nova forma de aprender e ver o mundo. Thums diz que o MST quer, com isso, implantar uma sociedade socialista. A grande questão é: qual o mal em implantar uma sociedade que vise à coletividade? Para debater essa questão, a IHU On-Line convidou duas pessoas que vivem a realidade das escolas itinerantes para concederem esta entrevista. Altair Morback é professor da escola itinerante Che Guevara, localizada no acampamento Jair Antonio da Costa em Nova Santa Rita/RS, e conversou conosco por telefone. Também por telefone, debatemos esse tema com Isabela Braga, que faz parte da Coordenação Estadual da Coletiva de Educação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terras.
Confira as entrevistas. IHU On-Line - Como o senhor analisa o conteúdo que é ensinado nas escolas do MST?
Altair Morback - O conteúdo em si das escolas itinerantes ainda está um pouco distante da realidade que está de acordo com o nosso propósito. Nossa ideia é ir de acordo com a linha do nosso grande mestre Paulo Freire [1] e, assim, tratar mais da questão humana, respeitando o conhecimento e a faixa etária do indivíduo que passa pela escola. Não é o que temos, porque os nossos educadores e educadoras passaram e passam ainda hoje por esse processo de formação da escola tradicional. Desta forma, as escolas itinerantes não são exatamente do jeito que gostaríamos que fossem. Elas são bastante tradicionais no sentido que ensinam os mesmos conteúdos aprendidos numa escola da rede municipal, estadual ou particular convencional.
IHU On-Line - Quais as principais diferenças desse conteúdo em relação às escolas convencionais?
Altair Morback - Não há muita diferença. Há uma igualdade bastante grande porque nossos educadores e educadoras são formados pelas universidades normais. Então, se ensina o ABC conforme as outras escolas ensinam. Nós redimensionamos essa metodologia pedagógica de fazer e ensinar, devido aos poucos recursos que temos. Às vezes, ao invés de ensinar o ABC numa lousa, ensinamos na areia, na terra, na horta, plantando pé de alface, por exemplo. Também redimensionamos os conteúdos para a realidade do acampamento. Este é um espaço precário, e o Estado não contribui para melhorar. Mas nossa escola pode ser considerada rica, tem muitos livros que vêm do MEC e da Escola Base de ótima qualidade.
IHU On-Line - O procurador de Justiça Gilberto Thums afirma que o problema das escolas itinerantes é o fato de o MST contratar professores que estejam de acordo com a ideologia do movimento. As escolas convencionais hoje têm muitos déficits, passam por cima de temas históricos extremamente importante sem sequer exigir uma reflexão, um debate sobre estes assuntos com os alunos. Que problemas um professor ideologicamente alinhado com os movimentos sociais pode gerar?
Altair Morback - Nunca fomos contra. A Secretaria de Educação nunca nos chamou para dialogar sobre a educação dos educadores. Os professores das escolas itinerantes são garantidos pelo Instituto Preservar, que mantém convênio com a Secretaria de Educação. O Instituto Preservar contrata professores assentados e não assentados, acampados ou não acampados, mas que são formados para dar aula à rede regular de ensino. Não vejo problema algum em relação à questão dos professores ideologicamente alinhados com o movimento. Eu acredito que todas as escolas deveriam ter uma preocupação com a formação humana, ao invés de ficar preparando pessoas para o mercado de trabalho, que é o que a maioria delas faz. Claro que nós também fazemos isso, de certa forma. É como eu disse antes. Nossos educadores vêm dessa formação. Portanto, a escola itinerante não ensina de forma isolada. Temos todas as contradições que uma escola regular também tem. Obviamente, temos especificidades como a escola itinerante. A meu ver, existe uma riqueza muito grande. Os professores, por exemplo, podem conhecer melhor os acampamentos e, por consequência, a história de vida de cada indivíduo, de cada criança, de cada pessoa que passa pela escola. Na escola tradicional é difícil de isso acontecer. O fato de vivermos próximo das pessoas que vivem a escola propicia essa educação com mais qualidade, sendo possível trabalhar todas as dimensões da formação humana e não apenas os conteúdos formais. Isso não significa que não ensinamos esses conteúdos, mas sim que nossa forma de ensinar é bem diferente, para além dos conteúdos.
IHU On-Line - E como você analisa essa determinação do Ministério Público em relação ao fechamento das escolas itinerantes?
Altair Morback - Acredito que essa determinação por parte do Ministério Público é uma questão política, de perseguição política por parte do Estado que pensa que fechando as escolas itinerantes irá desarticular e desestabilizar a classe trabalhadora que se movimenta e luta pela terra no Rio Grande do Sul. Quando fazíamos marcha e ocupação, nossas crianças sempre estavam junto e dávamos aula no mesmo jeito, porque essa forma de ver a escola tradicional não é o que fazemos e o espaço que se imagina quando se fala em escola não faz parte do nosso jeito de ensinar às crianças. Já demos aula no asfalto, no Incra, na Secretaria de Educação, na beira do rio, dentro de latifúndio, de estábulos.
IHU On-Line - As escolas itinerantes querem implantar uma sociedade socialista? Qual é o mal nisso?
Altair Morback - Nós buscamos essa questão da formação humana para que os alunos, acima de tudo, se deem conta de que devem ser os construtores da sua própria história. Se isso é pensar numa nova sociedade, talvez a escola itinerante queira sim implantar uma sociedade socialista. Mas não é o que temos nas escolas em função da questão dessa formação que nós recebemos.
IHU On-Line - Que problemas vocês temem ocorrer com a inserção das crianças acampadas nas escolas convencionais?
Altair Morback - Não sei se é temer, mas estamos fazendo o debate com as famílias de todos os acampamentos e são elas que vão dizer se a escola itinerante irá continuar ou não. Para nós, até o dia 28 existe o convênio com o Instituto Preservar e, portanto, nossas atividades continuam com as crianças. São infundadas as justificativas que o Ministério Público encontrou para dizer que temos que colocar nossas crianças em escolas regulares dos municípios. Primeiro: nem sempre existe transporte para isso. Segundo: no ano passado, durante a marcha que fizemos, tínhamos mais de 400 crianças marchando. Como é que vamos colocar todas essas crianças numa escola regular quando se chega num município como São Sepé, onde, numa escola do interior, a professora é também merendeira, diretora e secretaria da escola? Como uma escola desse porte irá receber 400 crianças? Essa justificativa do Ministério Público é infundada e evidencia que essa determinação faz parte da política do Estado, de perseguição política. Eles querem nos desarticular por aí, pois creem que automaticamente estão desarticulando a luta pela terra. Mas não vamos deixar isso acontecer.
IHU On-Line - Existe algum movimento por parte dos professores para que a escola itinerante não seja fechada?
Altair Morback - Nós estamos organizando um abaixo-assinado e também nos articulando com amigos e apoiadores de cada acampamento e vamos fazer o que for preciso para que a escola itinerante continue. Não fazemos isso por salário ou por emprego, mas porque acreditamos que esse é um direito que essas crianças têm. É por isso que nós, educadores, estamos mobilizados para que a escola itinerante continue.
Entrevista com Isabela Braga
IHU On-Line - O que implica, para os movimentos sociais, especialmente para o MST, essa Determinação do Ministério Público que visa fechar as escolas itinerantes?
Isabela Braga - Para nós, essa determinação é um tanto complicada pelo fato de termos uma escola legal, que funciona há 13 anos, aprovada e regimentada pelo Conselho Estadual de Educação. Isso, para nós, se torna uma dificuldade enorme porque temos lá uma história construída com as crianças. Trabalhamos a partir da pedagogia de Paulo Freire, ou seja, partimos da realidade do nosso trabalho pedagógico e não de uma realidade que está estancada. Uma realidade que tem outros horizontes e quer aprender a ver o mundo. E, então, com essa determinação, teremos de tirar nossas crianças de dentro desse processo construído para colocar em escolas convencionais que têm uma outra realidade de trabalho.
IHU On-Line - E de que forma essa determinação influencia na formação dos novos militantes?
Isabela Braga - As nossas escolas não estão diretamente ligadas à formação de militantes, mas sim à formação das crianças para a vida como um todo. Na verdade, ela não sofreria tanta influência nesse sentido. Agora, nossa escola tem o intuito de trabalhar a partir de um olhar real e não de alienação. Isso sim implica na vida das crianças, porque queremos formar pessoas com um olhar crítico.
IHU On-Line - Por que, em sua opinião, o procurador de Justiça Gilberto Thums reserva tanto tempo de trabalho para combater as ações do MST?
Isabela Braga - O promotor tem a intenção de extinguir o movimento, ou seja, é um objetivo para além de acabar com as escolas. O Governo do Estado e a Secretaria Estadual de Educação estão agindo dessa forma como mais um passo do dossiê feito no ano passado, para, então, desarticular o MST. Ele só está continuando algo que já começou antes e deixou claro, com isso, sua real intenção em relação ao MST.
IHU On-Line - O que o MST pretende fazer contra essa medida?
Isabela Braga - Nós estamos construindo um diálogo com as famílias para retomarmos a importância da escola dentro do acampamento, que parte da realidade das crianças acampadas e que são filhas de sem-terras. Iremos lutar para que esse processo continue, pois ele não começou num estalar de dedos. Nesse momento, pretendemos construir esse diálogo com a comunidade acampada e retomar a importância dessa escola.
IHU On-Line - O ministro Guilherme Cassel, há alguns meses, afirmou que esse movimento que visa criminalizar a luta do MST restabelece um ambiente de ditadura. Vocês esperam alguma ação provinda do governo federal contra o fechamento das escolas itinerantes?
Isabela Braga - Nesse momento, esperamos tudo. O governo que está à frente do nosso estado pretende reprimir os movimento sociais. Sabemos que, dependendo da decisão que os pais e as mães tomarem para a vida dos seus filhos, poderá ocorrer repressões por parte do governo estadual. Acreditamos que o governo federal pode nos ajudar, portanto estamos dialogando com eles também e, assim, continuar com a legalidade da nossa escola. Há pessoas no governo federal que nos ajudarão a fazer com que o estado repense essa determinação do MP.
IHU On-Line - Falta, hoje, institucionalidade ao MST?
Isabela Braga - O MST nunca pensou numa institucionalidade, até porque somos um movimento social e não um partido. Temos objetivos, como a reforma agrária, e isso envolve uma educação diferenciada. Nosso ideal é de luta como um movimento social.
Nota:
[1] Paulo Freire foi um educador brasileiro. Como diretor do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Recife, obteve sucesso em programas de alfabetização, depois adotados pelo governo federal (1963). Esteve exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi também professor da Unicamp (1979) e secretário de Educação da prefeitura de São Paulo (1989-1993). No II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, do dia 30-09-2004, o professor Dr. Danilo Streck, do PPG em Educação da Unisinos, apresentou o livro A pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Sobre a obra, publicamos um artigo de autoria do professor Danilo na 117ª edição, de 27-09-2004. Confira, ainda, a edição 223, de 11-06-2007, intitulada Paulo Freire. Pedagogo da esperança.