Carta de Berlim: Uma catástrofe chamada Brasil
Por Flávio Aguiar
03/04/2018 09:12
Por Flávio Aguiar
03/04/2018 09:12
Estes são breves apontamentos a partir de uma visita de um mês a S. Paulo e Rio Grande do Sul, mais algumas reflexões sobre momentos posteriores, às vésperas do julgamento do hábeas-corpus do ex-presidente Lula pelo STF.
As capitais destes dois estados são hoje espaços que parecem entregues ao deus-dará, dirigidas por administradores que não têm a menor compreensão da complexidade do fenômeno urbano no século XXI. Um deles mal entrou já vai abandonando a prefeitura para se candidatar ao governo do estado, de olho na presidência. O outro se revelou um proto-fascista pedindo forças federais para conter uma manifestação legítima, quando do julgamento de cartas marcadas do ex-presidente Lula no TRF-4.
Em ambas as cidades proliferam os barracos e tabuleiros pelas ruas, lembrando aquilo que na Argentina se chamou anos atrás de "cuentapropismo", ou seja, a viração por conta-própria diante do aumento dramático do desemprego, do subemprego, da precarização do trabalho, além da multiplicação também dramática do número de pedintes (incluindo crianças) e de miseráveis pelas ruas, praças, e dos alojados em tendas sob viadutos. Este é um dos retratos repulsivos e deprimentes da crise econômica profunda e da desorganização da agenda social no país, feitos que os arautos destas políticas retrógradas chamam de "normalidade" e de "recuperação".
Por seu turno, o governo federal, entre outros descalabros, promove ataques à educação, contra as universidades e a autonomia universitária, tudo para defender a semântica do golpe de estado que assola o país desde 2016. Quando do regime de 64, era proibido chamar o Golpe de 1* de abril de Golpe: o nome a ser consagrado era o de "Revolução de 31 de Março". Agora o governo resolve impedir que o golpe que o levou ao poder também seja chamado de "golpe", embora seja de outra estirpe, a parlamentar-jurídica-midiática-policial. O presidente ilegítimo parece um pião a dar voltas sobre si mesmo, com dificuldades para entregar algumas das principais encomendas que recebeu, como a da "reforma" (= destruição) da previdência pública, além de estar acossado - ele e seu grupo - por denúncias de todo lado.
Diante do assassinato da vereadora Marielle no Rio de Janeiro o governo pede pateticamente que suas representações diplomáticas pelo mundo enfatizem as providências que as autoridades devem estar tomando para elucidar o caso. Hoje, este é o principal esforço do corpo diplomático brasileiro no exterior: dar a impressão de que o país está num estado "normal" de funcionamento das instituições. Mas não dá para tapar o país com esta peneira. No mundo inteiro fontes bem informadas conhecem o estado catastrófico e catatônico em que o Brasil se encontra. É a isto que o governo reduziu o "Exército de Rio Branco": um ajuntamento de pedintes no plano internacional.
Aparentemente os grupos direitistas que ascenderam com o golpe de 2016 têm a faca e o queijo nas mãos, podendo ditar e desditar o que bem entenderem sobre o futuro do país, inclusive o eleitoral, alijando o ex-presidente Lula das futuras eleições e traçando o rumo destas. Entretanto fica cada vez mais evidente que estes grupos - que não se entendem entre si a não ser no esforço de alijar Lula e as esquerdas da disputa e do espaço político - nada têm a oferecer senão o caos, a desordem, a baderna, a violência física, verbal, midiática e virtual, além da sua cupidez em lucrar com o butim das privatizações a toque de caixa e do desmanche das instituições públicas. O Brasil tornou-se complexo demais para caber no tabuleiro de suas ideias parcas, curtas, recessivas e retrógradas.
Os mais extremados destes golpistas puderam-se histéricos quando o STF deu um passo que não estava no seu script, qual seja, o de acenar com a possibilidade de que o ex-presidente não venha a ser preso devido às condenações sem provas de que foi vítima. Multiplicaram-se as pressões sobre os juízes do Supremo em todos os níveis para que violem a Constituição, a presunção de inocência e confirmem o estado de exceção em que o país vive desde 2016 e que venha a permitir o espetáculo circense (daqueles da antiga Roma) da almejada humilhação do ex-presidente, para servir de exemplo de que quem nasceu na senzala lá deve permanecer.
Se conseguirem este objetivo, a balbúrdia nas hostes golpistas não será menor do que se não o conseguirem. Não há entendimento nem programa entre eles, exceto o que importam do pior ideário neo-liberal e norte-americano. A avidez da disputa interna nas direitas transparece, por exemplo, na estupidez com que pré-candidatos que querem se apresentar como "equilibrados" se puseram a imitar declarações da pior espécie do pré- de extrema-direita quando dos tiros contra a caravana de Lula no sul do país, querendo culpar a vítima pela agressão que lhe foi feita, reproduzindo a estrutura do pensamento que culpa a mulher pelo estupro que a agrediu.
O caldo de cultura em que estas atitudes vicejam é o da rifa que partes consideráveis das classes dominantes e médias do país submetem o país, desejosas de manter seus "direitos" a ver direitos como privilégios exclusivamente seus.
Do lado das esquerdas e dos críticos do golpe também há problemas candentes. O melhor que foi produzido nestas estreitas foi simbolizado na união de figuras expressivas (Lula, Boulos, Manuela, Freixo et alii) em torno de um esforço anti-fascista. Também a reação imediata, comovente e veemente de muita gente em todo o país, diante do assassinato de Marielle. Mas há muita confusão e propostas desencontradas. Estas vão desde a procura de FHC para impulsionar uma frente anti-fascista até a pregação de uma abstrata "desobediência civil" ou ainda de uma "luta fora das instituições" que não se sabe muito bem o que seja. Não sei que poderes mágicos o ex-presidente pessedebista teria para organizar o saco de gatos em que seu partido está transformado, sem falar em que muitos destes gatos preferem conviver com os fascistas a se verem juntos aos das esquerdas nesta tal de frente ampla, cujo provável destino seja de ficar sem fundos que a sustentem. Além de que ele mesmo parece biruta de aeroporto, indo de um lado a outro em declarações seguidamente desencontradas. Sem falar em quem se disponha a votar em Alckmim para impedir a ascensão de Bolsonaro.
De todo modo, quem está lutando, hoje, fora das instituições é o grupo dos golpistas. É possível, e até provável que diante do desacerto que reina entre suas hostes e da sua impossibilidade de apresentar candidaturas viáveis (incluindo-se aí da extrema-direita, que dificilmente bateria um candidato de centro-esquerda ou se esquerda num segundo turno decente), este grupo - ou parte dele - venha a optar pela suspensão sine-die das eleições de outubro. O que somente ampliaria a catástrofe em que o golpe mergulhou o país. Cabe às esquerdas lutar para que este novo AI-5 não desabe sobre nós.
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