"Faz muito tempo que o Brasil não respeita suas instituições e nada é mais sintomático dessa realidade do que o voto de uma Ministra do STF, fundamentado no inexistente "princípio da colegialidade", para tornar majoritário um posicionamento que sem o referido voto, seria vencido. Enquanto os defensores da "reforma" trabalhista bradam contra a possibilidade de interpretação judicial, reivindicando juízes "boca da lei", que se limitem a reproduzir o texto da ilegítima Lei 13.467, com todas as inconstitucionalidades que ele possui, a livre interpretação da Constituição é a saída para tratar desigualmente situações iguais. Basta comparar os votos proferidos no Recurso Especial Eleitoral 12486-27.2009.6.20.0000/RN e no Habeas Corpus proposto por Lula, pela mesma julgadora. As súmulas do TST, transformadas em regras pela dita "reforma", também são exemplo disso. Há tempo estamos desconstruindo nosso incipiente Estado de Direito, apenas chegamos agora a um momento em que não há mais como negar essa realidade.
No campo do Direito, estamos pagando o preço de um ativismo descomprometido com a Constituição. O problema, porém, não é o ativismo judicial, pois como ensinava Ovídio Baptista da Silva, ainda no século passado, Direito é linguagem, é cultura e, portanto, lidará sempre com discussões acerca dos limites de sua aplicação/ interpretação. Os juízes jamais serão "boca da lei" ou "boca da súmula", e de nada serve o artigo 8º da CLT ou as regras do CPC pretendendo isso. Nem o texto da Constituição pode ser o fim último de nosso discurso, pois também ela vem sendo alterada e desconfigurada não apenas por interpretações que a corrompem em sua essência, como também por alterações em sua redação, algumas já perpetradas e tantas outras tramitando como propostas assustadoras em nosso Congresso Nacional, tal como a PEC 300, que pretende desfigurar o artigo 7º da Constituição, alterando, por exemplo, a jornada de 8h para 10h.
A questão passa, portanto, por compreender que abraçamos a exceção quando toleramos que os torturadores do regime militar seguissem no poder após a abertura democrática. Passa pela compreensão de que, a partir já do início da década de 1990, iniciamos um processo de desmanche dos direitos e garantias previstos na Constituição, que acabou culminando no golpe parlamentar de 2016. E passa, sobretudo, pela compreensão de que estamos lidando com um movimento, cujo horizonte último é a destruição da democracia. É disso que também a "reforma" trabalhista realmente se ocupa.
A democracia, embora tolerada em alguns períodos de nossa história, sempre lidou com a resistência do capital, porque se sabe que em uma realidade capitalista, os direitos sociais são a principal arma da maioria oprimida contra a minoria opressora. Apenas cidadãos e cidadãs com condições de moradia, saúde, alimentação e trabalho tem possibilidade de pensar sobre a realidade a sua volta, de atuar politicamente, de obter informações sobre o que está acontecendo na sociedade e, sobretudo, de agir. Retirar direitos trabalhistas, permitindo aumento da jornada, redução da remuneração e do salário, é concretamente impedir que uma parcela importante da população do país tenha condições reais de atuar politicamente para concretizar e reforçar os ideais democráticos que elegemos em 1988.
Mesmo o necessário horizonte de superação de um sistema que sabemos autofágico, concentrador de renda e destruidor do ambiente em que vivemos, passa pelo respeito aos direitos sociais, pois como escreveu Brecht, não há como alterar a realidade se precisamos nos preocupar com a fome.
Por consequência, o discurso agora deve voltar-se à preservação do caráter democrático de regulação das relações sociais que a Constituição de 1988 consagra. Precisamos defender a Constituição de 1988, não por seu texto, mas por aquilo que ela propõe, já em seu preâmbulo, quando refere que instituímos, ali, um "Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça".
Nossa luta imediata, portanto, deve ser pela democracia. E democracia não convive com eliminação de pessoas, ameaças de morte, escutas clandestinas, monitoramento de grupos que expressam pensamentos divergentes, decisões não fundamentadas, destruição de direitos sociais ou supressão de liberdades individuais.
No Brasil de 2018, o problema não é mais entre esquerda e direita, por mais que se insista nessa dicotomia estabelecida ainda à época da revolução francesa, e por mais que ela ainda faça sentido na realidade atual.
A questão é saber que tipo de sociedade queremos e assumir posição diante disso. A realidade concreta de avanço de um pensamento autoritário nos convoca a refletir sobre o conteúdo mínimo de uma realidade democrática.
Lutar pela democracia é lutar por uma sociedade plural, que aceita diferenças e busca a inclusão social, na qual as pessoas podem se manifestar sem medo e tenham noção das regras de convívio social e de sua validade para todos e todas.
O que estamos arriscando, portanto, é o retorno a uma lógica autoritária, em que as regras valham de acordo com o perfil político do destinatário da decisão judicial, em que trabalhadores e trabalhadoras não tenham condição de exercício da cidadania e se sujeitem a regimes desumanos de trabalho, em que o pensamento divergente seja punido com a perseguição (declarada ou velada) e mesmo com a morte. Portanto, defender a revogação da Lei 13.467/2017 (a "reforma" trabalhista), criticar a perseguição política viabilizada pelo uso obtuso das regras jurídicas, gritar contra a eliminação física de quem defende direitos humanos, se opor à lógica da intolerância, não é ser de esquerda. É ter compromisso com uma realidade minimamente democrática."
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A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção
Valdete Souto Severo
No campo do Direito, estamos pagando o preço de um ativismo descomprometido com a Constituição. O problema, porém, não é o ativismo judicial, pois como ensinava Ovídio Baptista da Silva, ainda no século passado, Direito é linguagem, é cultura e, portanto, lidará sempre com discussões acerca dos limites de sua aplicação/ interpretação. Os juízes jamais serão "boca da lei" ou "boca da súmula", e de nada serve o artigo 8º da CLT ou as regras do CPC pretendendo isso. Nem o texto da Constituição pode ser o fim último de nosso discurso, pois também ela vem sendo alterada e desconfigurada não apenas por interpretações que a corrompem em sua essência, como também por alterações em sua redação, algumas já perpetradas e tantas outras tramitando como propostas assustadoras em nosso Congresso Nacional, tal como a PEC 300, que pretende desfigurar o artigo 7º da Constituição, alterando, por exemplo, a jornada de 8h para 10h.
A questão passa, portanto, por compreender que abraçamos a exceção quando toleramos que os torturadores do regime militar seguissem no poder após a abertura democrática. Passa pela compreensão de que, a partir já do início da década de 1990, iniciamos um processo de desmanche dos direitos e garantias previstos na Constituição, que acabou culminando no golpe parlamentar de 2016. E passa, sobretudo, pela compreensão de que estamos lidando com um movimento, cujo horizonte último é a destruição da democracia. É disso que também a "reforma" trabalhista realmente se ocupa.
A democracia, embora tolerada em alguns períodos de nossa história, sempre lidou com a resistência do capital, porque se sabe que em uma realidade capitalista, os direitos sociais são a principal arma da maioria oprimida contra a minoria opressora. Apenas cidadãos e cidadãs com condições de moradia, saúde, alimentação e trabalho tem possibilidade de pensar sobre a realidade a sua volta, de atuar politicamente, de obter informações sobre o que está acontecendo na sociedade e, sobretudo, de agir. Retirar direitos trabalhistas, permitindo aumento da jornada, redução da remuneração e do salário, é concretamente impedir que uma parcela importante da população do país tenha condições reais de atuar politicamente para concretizar e reforçar os ideais democráticos que elegemos em 1988.
Mesmo o necessário horizonte de superação de um sistema que sabemos autofágico, concentrador de renda e destruidor do ambiente em que vivemos, passa pelo respeito aos direitos sociais, pois como escreveu Brecht, não há como alterar a realidade se precisamos nos preocupar com a fome.
Por consequência, o discurso agora deve voltar-se à preservação do caráter democrático de regulação das relações sociais que a Constituição de 1988 consagra. Precisamos defender a Constituição de 1988, não por seu texto, mas por aquilo que ela propõe, já em seu preâmbulo, quando refere que instituímos, ali, um "Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça".
Nossa luta imediata, portanto, deve ser pela democracia. E democracia não convive com eliminação de pessoas, ameaças de morte, escutas clandestinas, monitoramento de grupos que expressam pensamentos divergentes, decisões não fundamentadas, destruição de direitos sociais ou supressão de liberdades individuais.
No Brasil de 2018, o problema não é mais entre esquerda e direita, por mais que se insista nessa dicotomia estabelecida ainda à época da revolução francesa, e por mais que ela ainda faça sentido na realidade atual.
A questão é saber que tipo de sociedade queremos e assumir posição diante disso. A realidade concreta de avanço de um pensamento autoritário nos convoca a refletir sobre o conteúdo mínimo de uma realidade democrática.
Lutar pela democracia é lutar por uma sociedade plural, que aceita diferenças e busca a inclusão social, na qual as pessoas podem se manifestar sem medo e tenham noção das regras de convívio social e de sua validade para todos e todas.
O que estamos arriscando, portanto, é o retorno a uma lógica autoritária, em que as regras valham de acordo com o perfil político do destinatário da decisão judicial, em que trabalhadores e trabalhadoras não tenham condição de exercício da cidadania e se sujeitem a regimes desumanos de trabalho, em que o pensamento divergente seja punido com a perseguição (declarada ou velada) e mesmo com a morte. Portanto, defender a revogação da Lei 13.467/2017 (a "reforma" trabalhista), criticar a perseguição política viabilizada pelo uso obtuso das regras jurídicas, gritar contra a eliminação física de quem defende direitos humanos, se opor à lógica da intolerância, não é ser de esquerda. É ter compromisso com uma realidade minimamente democrática."
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A difícil defesa da Democracia em um Estado de Exceção
Valdete Souto Severo
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.
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