"DEDO NA FERIDA"
"Tenho convicção de que expeliremos o 'cancro'", diz Tendler sobre sistema financeiro
Tendler traz depoimentos, imagens e números que demonstram papel do sistema financeiro na miséria do mundo
São Paulo – Silvio Tendler, 67 anos, aborda em seu novo documentário a urgente questão do poder do sistema financeiro em relação à política. Dedo na Ferida, que começou a ser feito no ano passado e foi selecionado para a mostra competitiva do Festival do Rio, será exibido naquela cidade nas próximas quinta e sexta (12 e 13), com debate no primeiro dia entre o autor e a economista Laura Carvalho. Mesmo falando em "tragédia anunciada", o cineasta acredita em mudança de rumos, lembrando que os movimentos históricos são lentos. "Hoje o cancro é o sistema financeiro, mas tenho convicção de que o expeliremos e viveremos num mundo solidário e feliz", afirma.
Com duração de 90 minutos, o filme tem como "fio de ligação" o cotidiano do podólogo Anderson Ribeiro, residente em Japeri – cidade na região metropolitana do Rio com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado –, que trabalha em Copacabana, na zona sul carioca. "O tempo de deslocamento dele todo dia é o tempo de uma sessão de cinema. Dedo na Ferida discute uma sociedade na qual ele é um cidadão à margem, não tem uma conta no banco, não vai ao cinema, nem ao teatro. Não tem uma vida ativa, é um cara que trabalha para sustentar a família", diz o cineasta.
Ele pretende refletir sobre o avanço do sistema financeiro e seus reflexos sobre o cotidiano das pessoas, desde a perda de direitos até a qualidade de vida. O documentário foi patrocinado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro e pela Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros. A parceria com as entidades já havia rendido o documentário Privatizações - A Distopia do Capital, de 2014.
Dezenove pessoas foram entrevistadas, sendo 12 brasileiros, como o diplomata e ex-ministro Celso Amorim, o economista Paulo Nogueira Batista Jr., (Banco dos Brics), os professores Ladislau Dowbor, Laura Carvalho e Guilherme Mello e ativistas como Guilherme Boulos (MTST) e João Pedro Stédile (MST). Entre os estrangeiros, falam o ex-ministro grego Yanis Varoufakis, o cineasta Costa-Gavras e os intelectuais Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra, Portugal), David Harvey (University of New York, Estados Unidos) e Maria José Fariñas Dulce (Universidade Carlos III, Espanha).
O filme procura mostrar como o sistema financeiro se beneficia de crises e aumenta a concentração de renda. "Os bancos ficam com a parte gorda da carne, para o povo restam os ossos", comenta Tendler. Um retrato dos verdadeiros donos do poder. Ele defende um novo projeto, sem saber ainda qual será. Sobre o avanço conservador no Brasil e as eleições marcadas para 2018, diz se preocupar mais com "a inapetência e desorganização da esquerda".
Há um ano, durante a coleta de informações e depoimentos para o documentário, você dizia que o mundo "não aprendeu" com a crise de 2008. Os mercados financeiros seguem livres e influenciam fortemente o poder político. Essa "ferida" tem cura?
Sou um otimista da geração que nasceu protegida pela vacina anti-pólio e pela penicilina. Não tivesse sido assim e poderia ter tido paralisia infantil. ou morrido de sífilis. Hoje o cancro é o sistema financeiro, mas tenho convicção de que o expeliremos e viveremos num mundo solidário e feliz.
De que forma(s) o podólogo de Japeri sofre os impactos da financeirização e da globalização?
Ele ganha mal, não tem acesso a um sistema de saúde digno, nem de educação para os filhos. Leva uma hora e meia para ir e outras tanto para voltar do trabalho, tempo para assistir diariamente dois longas metragens o que nunca faz por falta de tempo e ânimo.
Os bancos ficam com a parte gorda da carne, para o povo restam os ossos. Isso tem que mudar.
Poucos dias atrás, foi divulgada a informação de que seis brasileiros detêm a mesma renda dos 100 milhões mais pobres do país. Os 5% mais ricos concentram o mesmo que os outros 95%. A concentração de renda é a face mais perversa desse processo?
A concentração de renda é apenas a gota d'água que entorna um dique represado de injustiças e um libelo gritante que revela o mundo em que estamos vivendo. Entre os extremos existe muita desigualdade que tem que ser superada. Senão os remediados viveremos numa zona de conforto que também gera miséria.
Em termos mundiais, existe saída política para isso ou os Estados já se renderam? Vê movimentos com força suficiente para combater a força do chamado mercado?
Os movimentos históricos são lentos, nos cabe iniciá-los ou dar sequência mesmo sem a certeza de ver o mundo melhor. Pensemos em nossos netos e seremos mais felizes.
O Brasil vive um processo de venda de patrimônio público e intensa desregulamentação, com perda de direitos por meio de uma reforma trabalhista, já aprovada, e ainda com a tramitação de um projeto sobre a Previdência. O debate sobre um projeto nacional de desenvolvimento – que a sua geração, por exemplo, testemunhou – foi definitivamente abandonado? Ou pode ser retomado a partir das eleições de 2018, por exemplo?
Está muito difícil para nós, mas para eles também. Não estão entrando com bola e tudo como imaginaram que seria. Continuemos lutando.
Você já tem alguma clareza sobre o cenário eleitoral? O avanço conservador lhe preocupa?
Me desespera mais a inapetência e desorganização da esquerda. Por aí me desespero. Sei em quem não votarei, mas ainda não sei em quem e com que programa votarei.
Um ano atrás, você também dizia que o enfraquecimento do Estado e o domínio do capital poderiam levar o mundo a uma tragédia...
Estamos assistindo essa tragédia anunciada configurar-se. Temos que nos organizar em torno de um projeto que hoje não conheço.
Dos diversos depoimentos, algum lhe chamou mais a atenção?
Todos são muito fortes.
Com cinco décadas de trabalhos que abrangem grande parte da história do Brasil e suas mazelas, quais projetos devem vir à tona?
Uma série de filmes muito fortes, espero.
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