"Judiciário, Executivo, Legislativo e MP estão articulados para aprofundar processo golpista"
Marco Weissheimer
Dois dias depois da deposição da presidenta Dilma Rousseff, o novo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, através de uma portaria, promoveu uma mudança da maioria dos membros da Comissão Nacional de Anistia, destituindo vários conselheiros e conselheiras e nomeando 19 novos integrantes, incluindo um suspeito de ter sido colaborador da ditadura. Foi a primeira vez que ocorreu esse tipo de intervenção na Comissão, desde sua criação, no governo Fernando Henrique Cardoso. Até então, a indicação de integrantes da comissão sempre envolvia a participação da sociedade civil, especialmente de entidades de vítimas e desaparecidos na ditadura e envolvidas com a agenda dos direitos humanos.
Em entrevista ao Sul21, José Carlos Moreira da Silva Filho, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais na PUC-RS e ex-vice-presidente da Comissão de Anistia, fala sobre a intervenção que o governo Temer promoveu na entidade e a relaciona com o atual momento político que o Brasil está vivendo. Na sua avaliação, estamos vivendo um momento de ruptura institucional, de violação crescente de regras do Estado Democrático de Direito e do Código do Processo Penal, com a benção do Judiciário, do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal. Para José Carlos Moreira, o Judiciário e o Ministério Público, além de não estarem submetidos a praticamente nenhum controle hoje, estão articulados com o Executivo e o Legislativo para aprofundar o processo golpista e autoritário em curso no país. "A Constituição, cada vez mais, é aquilo que o juiz diz que ela é", afirma o pesquisador que critica a justificação do estado de exceção para a Lava Jato e define como "escandalosa" a interferência que essa operação teve nas eleições municipais:
Sul21: Qual o balanço que você faz do trabalho desenvolvido pela Comissão de Anistia desde sua criação até hoje?
José Carlos Moreira: A Comissão de Anistia é um órgão de reparação às vítimas e às pessoas que foram perseguidas durante a ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985. Ela está colocada na Constituição, no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que prevê a reparação. A Constituição entendeu por bem dar o nome de anistia a essa reparação. Essa ideia já estava presente na Lei 6.683, de 1979. Ainda que tivesse um conteúdo de caráter penal, de anistiar crimes políticos e crimes conexos, ela já trazia o sentido de reparação. Ela foi, ao mesmo tempo, o resultado de uma luta ascendente da sociedade por redemocratização, pela libertação dos presos políticos e pela volta dos exilados, e uma política que veio de cima para baixo patrocinada pelo governo militar e que, até certo ponto, foi bem sucedida no objetivo de controlar a transição, garantindo a não investigação dos crimes da ditadura e a impunidade dos agentes da ditadura que praticaram crimes de lesa humanidade.
Esse sentido da lei de 1979 foi reafirmado na emenda 26 de 1985, que foi a mesma emenda que convocou a Constituinte. É interessante perceber que a anistia e a Constituição de 1988 são duas coisas que estão imbricadas. No entanto, a Constituição de 1988 não repetiu em nenhum lugar esse texto que estava na lei de 1979 e na emenda 26. É importante assinalar que essa emenda é uma emenda a uma Constituição autoritária, a Constituição outorgada de 1967. Na Constituição de 1988 não há uma palavra sequer relacionada à anistia de crimes de lesa humanidade cometidos por agente da ditadura ou mesmo usando expressão capciosa dos crimes conexos. A única coisa que ela fala sobre a anistia é que a tortura é um crime insuscetível de graça ou anistia e que serão anistiados aqueles que foram perseguidos políticos pelo Estado brasileiro e que terão direito a uma reparação. Mas a Constituição não detalhou de que forma essa reparação ocorreria.
Sul21: A partir de quando esse tema passou a ser detalhado e tratado de forma mais efetiva?
José Carlos Moreira: A partir da promulgação da Constituição, os estados foram criando as suas comissões de anistia estaduais e órgãos federais também foram criando as suas próprias comissões, em um processo um tanto difuso e desconexo. Em função da pressão dos movimentos sociais, especialmente aqueles que foram perseguidos pela ditadura, no governo Fernando Henrique Cardoso, o instituto da anistia foi regulamentado via Medida Provisória. Daí surgiu a Comissão da Anistia. Essa foi a maneira encontrada para que o Estado brasileiro pudesse identificar os casos de violação de direitos humanos e procurar repará-los.
Essa Medida Provisória foi transformada na lei 10.559, de 2002, já no governo Lula, que prevê várias possibilidades de perseguição política e de reparação. Foram previstas várias modalidades de reparação: econômica, reparação simbólica (por meio da qual o Estado reconhece que perseguiu aquela pessoa e que deve a ela uma reparação), reintegração ao emprego, retorno a cursos universitários interrompidos por perseguição, possibilidade de validação de títulos obtidos no exterior e contagem de tempo de trabalho.
De acordo com essa lei, todos os casos relacionados à anistia política devem ser analisados pela comissão. A partir daí todos os processos que estavam pendentes em ministérios e outros órgãos foram para a Comissão de Anistia, que ficou sob a condução administrativa do Ministério da Justiça. Em tese, de acordo com a lei, o ministro tem a prerrogativa de indicar o presidente da comissão e seus conselheiros e conselheiras, que não recebem nenhum valor. É um serviço considerado de relevante interesse público. Desde o início, embora isso não esteja escrito na lei, a Comissão de Anistia foi sempre montada e construída com a participação dos movimentos sociais, principalmente dos movimentos de familiares de mortos e desaparecidos na ditadura, de organizações de combate à tortura e de outros grupos envolvidos com direitos humanos. Os membros da comissão sempre foram pessoas vinculadas a essa temática e de diferentes estados do Brasil. Sempre foi essa a tradição da Comissão de Anistia.
Sul21: A Comissão de Anistia tem um prazo estabelecido para seguir atuando?
José Carlos Moreira: Não, ela não tem prazo para terminar e essa foi uma decisão acertada, ao meu ver. O processo de acesso a documentos públicos e de reconhecimento do que significou o período da ditadura em termos de violações generalizadas de direitos é muito complicado, truncado e ambíguo na sociedade brasileira. Nesse meio tempo, nós tivemos a publicação do Relatório dos Mortos e Desaparecidos, a Comissão Nacional da Verdade, o debate sobre a responsabilização dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa humanidade, a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da guerrilha do Araguaia, a discussão no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, além de uma série de eventos culturais e institucionais em torno dessa pauta.
Esse debate veio se avolumando, principalmente a partir de 2007. Essa intensificação fez com que muitas pessoas que, até então, por uma série de razões, não tinham ingressado com pedidos de reparação, passassem a ir atrás. A compreensão que a Comissão de Anistia foi construindo é a de que ir atrás dessa história é um benefício não só para as pessoas que foram atingidas pela ditadura, mas para toda a sociedade brasileira. Há mais de dez anos, a comissão vem construindo um arquivo diferente daquele que está lá no Arquivo Nacional, que possui os arquivos do SNI, dos órgãos de segurança, monitoramento e de inteligência. Nestes órgãos, os adjetivos, as qualificações e a hermenêutica são todos voltados para identificar atos de resistência à ditadura como atos de terrorismo e para justificar o combate à subversão. Eles se utilizam de eufemismos como, por exemplo, chamar a tortura de interrogatório, além de não reconhecer certos fatos e contextos.
Sul21: Quais os principais acúmulos construído pela comissão neste período?
José Carlos Moreira: A Comissão de Anistia vem construindo um arquivo a partir do olhar das vítimas, com as suas manifestações, os seus documentos e com sua forma de contar o que ocorreu. Nós entendemos que, para lidar com grandes massacres e processos de violência dentro de uma sociedade, o olhar indispensável para reconstruir as instituições que foram usadas para essas práticas é aquele das pessoas que foram diretamente atingidas por elas. A comissão já apreciou cerca de 70 mil casos até hoje. Destes, dois terços são casos de deferimento de pedidos de reparação, um terço casos de indeferimento e ainda há cerca de 20 mil processos que estão protocolados e que aguardam apreciação.
Nas sessões onde os processos são analisados, o requerente ou a requerente, quando está presente, sempre tem o direito à palavra. O momento mais importante desses processos é quando as pessoas falam e dão seu testemunho. Isso foi gerando uma impressão natural na comissão de que o sentido da palavra anistia praticado por ela é muito diferente o tradicional. Em primeiro lugar, porque não se trata de o Estado perdoar as pessoas que praticaram crimes políticos. Aliás, não se trata nem de qualificar esses atos como crimes políticos. Crime político é uma ação que você pratica contra um Estado legítimo; são crimes contra instituições públicas do Estado. Quando o Estado é usurpador, não se trata de crime político, mas sim de direito de resistência. Então, não se trata de o Estado perdoar, mas sim de pedir desculpas pelas violações que cometeu. Quando se reconhece o direito de alguém à reparação, o presidente que está conduzindo a sessão pede, em nome do Estado brasileiro, desculpas aquela pessoa e a seus familiares. É um momento simbólico com alto valor emotivo, político e simbólico.
No segundo governo Lula, quando Tarso Genro era ministro da Justiça, Paulo Abrão, que hoje é secretário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assumiu a presidência da Comissão de Anistia. Tarso Genro e Paulo Abrão decidiram ampliar as ações da comissão no sentido educativo. Surgiu aí um dos projetos de memória que a comissão vem realizando desde então, as Caravanas da Anistia. Ao todo, foram realizadas quase 100 Caravanas da Anistia em diferentes estados. No Araguaia, a Caravana ocorreu em praça pública, com Tarso pedindo desculpas, em nome do Estado brasileiro. Neste período, a comissão começou a construir várias políticas de memória como o edital Marcas da Memória, que financia filmes, livros, eventos acadêmicos, peças de teatro e uma série de outros projetos culturais, o projeto Clínicas de Testemunho, que oferece assistência psicológica e psicanalítica às vítimas de tortura, e a construção do Memorial da Anistia Política, sediado em Belo Horizonte com a curadoria da UFMG e que já está quase concluído.
Sul21: Como se deu o processo de mudança de conselheiros na Comissão de Anistia, pelo governo Temer, e quais as possíveis repercussões dessa decisão no futuro do trabalho da comissão?
José Carlos Moreira: Em 2016, a comissão se reuniu uma ou duas vezes. Havia um planejamento para o ano que, infelizmente, não pode ser colocado em prática. Dois dias depois da deposição da presidenta Dilma, o ministro da Justiça, através de uma portaria, fez algo que até nunca havia sido feito na Comissão de Anistia em termos procedimentais. Ele destituiu uma boa parte do conselho, afastando conselheiros que ainda não tinham pedido para sair. Alguns conselheiros e conselheiras entenderam que não deveriam permanecer na comissão por conta da ruptura constitucional que marcou a deposição de Dilma e sua substituição por um governo ilegítimo. Esse foi um tema que dividiu um pouco o conselho, mas a maioria decidiu que o seu compromisso maior era com o processo de mais de 30 anos de anistia no Brasil, com as pessoas que precisam dessa reparação e com todo o legado que a Comissão de Anistia construiu. A ideia era garantir que não ocorressem retrocessos dentro da comissão.
Dos conselheiros que decidiram não sair e tentar ficar para evitar retrocessos, sete foram substituídos, entre eles eu que estava ocupando a função de vice-presidente na comissão. Além de mim, foram destituídos os conselheiros Manoel Moraes – que é membro da Comissão da Verdade Dom Helder Câmara, no Recife –, Prudente Mello, Virginius José Lianza da Franca, as conselheiras Márcia Elayne Berbich Moraes, Carolina de Campos Melo e Ana Maria Guedes, sendo esta última integrante do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia.
Outros, que não estavam nesta lista, também saíram logo em seguida. Foram nomeados 20 novos conselheiros. Desse total, o que me chamou a atenção de uma maneira muito forte foi a mudança do critério que procurava garantir uma representatividade dos estados brasileiros na comissão. Quase todo mundo dos novos conselheiros vem da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, de São Paulo.
Além disso, os nomes de muitos desses novos conselheiros orbitam em torno do pensamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, um constitucionalista brasileiro que escreveu um livro chamado "A democracia possível" e era um apologista da ditadura civil-militar. Ele criticava os "excessos" da ditadura, mas dizia que não tinha outro jeito, que era melhor isso do que a subversão e do risco do "Brasil virar uma nova Cuba". Pelo perfil dos novos integrantes da Comissão de Anistia, ela provavelmente vai adotar posicionamento majoritário diferente do que vinha prevalecendo até então quanto à responsabilização dos agentes da ditadura responsáveis por crimes de lesa humanidade.
Outro problema é a presença do jurista Paulo Lopo Saraiva, sobre o qual recaem suspeitas de que teria participado de órgãos de informação da ditadura. Além disso, há textos dele de apoio à ditadura, de cumprimentos ao ditador Médici. Até agora, ele não se pronunciou sobre essas suspeitas nem sobre esse texto dele que está circulando. As indicações dos novos conselheiros não tiveram nenhuma participação da sociedade civil, como ocorria até então. Nós tememos pela continuidade dos projetos de memória e dos trabalhos da comissão. Tudo isso configura um cenário preocupante, para não falar, é claro, do cenário de rupturas institucionais que estamos vivendo.
Sul21: Há quem já defina esse cenário de rupturas institucionais como um estado de exceção. Como é que você definiria o momento político e jurídico que o país está vivendo?
José Carlos Moreira: Eu afirmo sem nenhum receio e de forma categórica que o que estamos vivendo no Brasil é algo semelhante ao que aconteceu em Honduras e no Paraguai. Foi uma ruptura institucional, um golpe de novo tipo. Alguns chamam de golpe branco, outros de golpe parlamentar. O golpe parlamentar, de certa maneira, também aconteceu em 1964. Quando o presidente João Goulart ainda estava em solo nacional, o Congresso Nacional prontamente se articulou para tentar dar um verniz de legalidade ao golpe militar que estava sendo aplicado. Castelo Branco foi buscar a sua legitimação no Congresso Nacional. Havia, inclusive, outro candidato para assumir a presidência, mas ele conseguiu prevalecer, com a ajuda de Juscelino Kubitschek que entendeu que o menos pior naquele contexto seria apoiar Castelo Branco. Juscelino dizia que Castelo Branco seria um presidente temporário que convocaria eleições para 1965. Mas, no meio do caminho, tinha alguém chamado Costa e Silva que não queria que isso acontecesse e acabou forçando a cassação de Juscelino e o aprofundamento da ditadura no Brasil.
Em 1964, também houve uma participação do Judiciário. Na madrugada do golpe, o ministro do STF, Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa, assistiu à posse do deputado Ranieri Mazzilli na presidência da República e disse que todo aquele processo estava de acordo com a Constituição, como se diz hoje também. Uma diferença do que está acontecendo hoje em relação a 1964 é que o mecanismo institucional agora é mais sofisticado. O mecanismo do impeachment, presente na Constituição, foi esvaziado de sentido, uma vez que se afastou uma presidenta sem que ela tivesse cometido crime de responsabilidade.
Quanto ao estado de exceção, nós não vivemos neste momento uma ditadura aos moldes daquela instaurada em 1964 e aprofundada em 1968, mas a exceção, de certo modo, já foi explicitada abertamente pelo poder Judiciário. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tem a atribuição de revisar os atos do juiz Sérgio Moro, decidiu, ao julgar uma representação de advogados contra certos procedimentos de Moro, que a Operação Lava Jato trata de uma situação excepcional, que até agora não havia acontecido no Brasil, e a ela não se aplicam as regras comuns que se aplicam aos demais processos. O relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti, citou, via Eros Grau, o conceito de estado de exceção em Agamben. Ao descrever o que é o estado de exceção para Agamben, o juiz quis dar a entender que a descrição apresentada pelo estudioso italiano era uma justificativa da exceção em algumas situações. Isso demonstrou um total desconhecimento da obra de Agamben que usa o conceito de estado de exceção para denunciá-lo, jamais para apoiá-lo ou justificá-lo em determinados contextos.
Então, de certo modo, a exceção está declarada do ponto de vista judicial. Infelizmente, essa exceção apareceu também no caso da deposição da presidenta Dilma Rousseff. Ela foi tratada de uma forma e o vice-presidente, que praticou os mesmos atos dos quais ela é acusada, foi tratado de outra forma. O mesmo ocorreu com políticos de outros partidos que foram tratados de forma diferente do que foram políticos do PT. Esses casos deixam evidente o processo seletivo que está em curso.
Sul21: Em debates recentes, você identifica sinais dessa postura do Judiciário que justifica a exceção em alguns julgamentos mais antigos do STF…
José Carlos Moreira: Sim. Eu regrido um pouco mais neste processo até o julgamento no STF da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153, que questionou a constitucionalidade da Lei de Anistia para crimes cometidos na ditadura militar. Até a Corte Interamericana de Direitos Humanos disse que a decisão do Supremo foi equivocada e incompatível com os padrões internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos. Neste julgamento, o Supremo reproduziu o mesmo entendimento firmado pela ditadura militar para forçar a ideia de que a Lei de Anistia impediria a investigação dos crimes praticados no período da ditadura e a responsabilização dos autores desses crimes.
Abusou-se muito da dogmática e da conceituação jurídica para fazer passar esse entendimento adiante. E o Supremo assinou embaixo, escancarando as portas para o golpismo. Essa decisão levou para dentro dos gabinetes do Supremo esse entendimento golpista. Gilmar Mendes e Eros Grau chegaram a afirmar que a Constituição de 1988 não era plenamente soberana, porque ela estaria adstrita a um pacto de compromisso feito com a ditadura, a velha tese de que a anistia foi uma transição pactuada. Na verdade, não houve pacto, mas sim a imposição de certos parâmetros pela ditadura. Ou era daquele jeito ou não era.
O Supremo cometeu também inversões históricas dizendo que, na época, a sociedade brasileira foi às ruas para pedir a anistia ampla, geral e irrestrita, o que beneficiaria também os torturadores. Não foi nada disso. As palavras "ampla", "geral" e "irrestrita" se referia aos que estavam presos e condenados por participar da luta armada. Estes, inclusive, não foram anistiados. Acabaram sendo libertados por outros procedimentos, não pela anistia. Essa postura do STF é muito grave do ponto de vista da defesa da nossa Constituição. Nós estamos vivenciando agora uma disputa em torno do sentido da Constituição. Não é à toa que, após o golpe ser concluído, estamos vivendo um processo veloz de desconstitucionalização muito forte. A PEC 241 é um exemplo disso, assim como outras ações promovidas pelo governo golpista em pautas relacionadas à Previdência Social, aos direitos trabalhistas e aos direitos humanos.
Na Constituinte, Sarney dizia que a nova Constituição teria que ter uma linha de continuidade com os ideais da "Revolução". Não é a toa que vemos hoje pessoas tentando suavizar o golpe de 64. Isso serve para suavizar também o golpe dado agora em 2016. É impressionante a semelhança dos atores que estão participando, só que com papeis um pouco diferentes. O papel de protagonismo do Poder Judiciário é muito maior hoje, com um apoio muito forte do Ministério Público, do que foi no período da ditadura. Em 1964, o Judiciário veio meio a reboque, sendo monitorado de perto pelos militares. Agora, não há mais necessidade disso. O Poder Judiciário está totalmente envolvido neste processo com raras e honrosas exceções. O Judiciário brasileiro tem dissidências interessantes como a Associação Juízes para a Democracia, dissidências que a gente não identifica no Ministério Público Federal que parece mais coeso em referendar esse estado de exceção cada vez mais amplo. Quando você começa a afrouxar a base democrática da Constituição, a tendência é aprofundar a exceção.
Sul21: Na sua avaliação, há algum espaço de disputa sobre essa questão dentro do Supremo?
José Carlos Moreira: Infelizmente, dentro do Supremo, o único que, de fato, assumiu uma posição um pouco mais contestatória em relação ao processo de ruptura institucional que representou o impeachment da presidenta Dilma foi o ministro Marco Aurélio. O engraçado é que, no caso da ADPF 153, dois meses antes dela ser julgada pelo STF em 2010, ele deu uma entrevista em cadeia nacional de televisão dizendo que a ditadura havia sido um mal necessário. Ele é um dos ministros que defende fortemente aquela interpretação da Lei de Anistia que citei antes. Em relação a essa lei não foi feita coisa julgada ainda no Supremo. Houve um recurso em relação à decisão de 2010 e depois vieram outras ações como a ADPF impetrada pelo PSOL e a decisão da Corte Interamericana. Hoje, paradoxalmente, é possível dizer que há uma chance maior de mudança desse entendimento. Já em relação ao atual processo de ruptura institucional em curso não vejo um espaço de disputa dentro do Supremo. O ministro Teori manifestou algumas reticências em relação às escutas telefônicas, mas se contentou com um pedido de desculpas do juiz Sérgio Moro. De acordo com a lei, ele teria que ter ido além disso, assim como os órgãos de controle do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público.
Isso está revelando que o desenho institucional feito pela Constituição de 1988 tem problemas. Hoje, percebemos que o Judiciário e o Ministério Público são órgãos praticamente sem controle no Brasil. Na Constituinte, foi forte a discussão sobre a necessidade de um controle externo do Judiciário, com representantes de outros poderes e, principalmente, da sociedade civil. Depois de muito tempo surgiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só que a maior parte de seus membros são integrantes do próprio Judiciário. Para existir, de fato, um controle externo isso não poderia acontecer. Então, estamos vivendo um processo no qual, cada vez mais, a Constituição é aquilo que os juízes dizem que ela é, mesmo que isso viole flagrantemente cláusulas pétreas na sua literalidade, como está acontecendo agora com a presunção da inocência.
O Supremo está tomando decisões com base no "clamor popular", flexibilizando cláusulas pétreas da Constituição e relativizando cláusulas democráticas. O que a sociedade brasileira pode fazer para se contrapor a isso? Não houve um planejamento institucional que previsse esse ativismo judicial intenso que estamos vendo hoje. Da mesma foram, o controle do Ministério Público é feito pelo próprio MP, que foi imaginado para ser um poder voltado às causas populares, democráticas e emancipatórias. Ao invés disso, ele está se revelando um poder cada vez mais punitivista que estabelece medidas completamente arbitrárias como essas dez propostas contra a corrupção que, ao invés de investigar crimes, começam a investigar pessoas, procurando prever se elas irão ou não se envolver em crimes e se contentando com ilações, suposições, narrativas e convicções para construir as suas denúncias e os seus libelos acusatórios e para superar as dificuldades encontradas para construir provas.
Construir prova é difícil mesmo e tem que ser assim mesmo. O passado do nosso país mostra o poder exacerbado e abusivo das instituições de segurança no Brasil contra os cidadãos. Nós já vivemos uma época sem habeas corpus e ele está voltando a ser relativizado. São muitos absurdos que estão acontecendo do ponto de vista jurídico e penal. Isso, infelizmente, já acontecia no Brasil, atingindo pessoas com menos recursos e a população da periferia que vive esses abusos há muito tempo. As violações das regras do processo penal e o punitivismo exacerbado são práticas que vêm ocorrendo há longo tempo no país. Agora, essa prática começa a se alastrar para outros setores da sociedade. Na ditadura, a prática da tortura começou a escandalizar as classes médias e altas, mas ela já acontecia com as classes mais baixas. Acho que isso começa a acontecer agora com esses abusos do ativismo judicial, especialmente porque é cada vez mais evidente o uso seletivo desses abusos.
Sul21: Os juízes e procuradores envolvidos na Lava Jato negam essa seletividade…
José Carlos Moreira: É interessante perceber que sempre que surge algum fato que, de certo modo, se coloca contrário à ruptura institucional, como ocorreu com a nomeação de Lula para a Casa Civil ou com a cassação do Cunha, um ou dois dias depois ocorre uma ação da Operação Lava Jato. Agora, nas eleições municipais, isso foi escandaloso. Talvez o fato mais escandaloso tenha sido a participação do ministro da Justiça em um comício do PSDB em Ribeirão Preto, onde havia um candidato do Partido dos Trabalhadores que estava bem cotado para a prefeitura do município. Neste comício, o ministro da Justiça adiantou que haveria mais ações da Lava Jato na semana seguinte. Um ou dois depois, prendem o ex-ministro Palocci que é uma figura mais do que conhecida em Ribeirão Preto. Dois ex-ministros da Fazenda, dos governos Lula e Dilma, foram presos uma semana antes das eleições. É possível perceber, então, uma coordenação temporal que só os mais ingênuos podem considerar seja uma coincidência.
Muito se fez no Brasil em termos da Justiça de Transição. A Comissão de Anistia contribuiu muito para construir uma consciência de memória da ditadura no país e para mobilizar politicamente a juventude em torno desse fato. O Levante da Juventude e outros grupos fizeram escrachos e participaram de inúmeras mobilizações. O trabalho da Comissão da Verdade também foi importante neste sentido. No entanto, essas ações ocorreram pela metade. Houve uma barreira muito forte, principalmente por parte do Judiciário. Acho que foi o poder que menos fez no Brasil em prol de uma justiça de transição. Em todas as oportunidades que teve para julgar esses temas, com raríssimas exceções, repetiu o entendimento da ditadura.
Uma das maiores responsabilidades pelos abusos que a Operação Lava Jato vem cometendo é do Supremo Tribunal Federal que diz que está tudo bem. Criticar esses abusos não significa ser contra o combate à corrupção. A corrupção deve ser combatida mas não de uma maneira seletiva e instrumentalizada politicamente, como já ocorreu tantas outras vezes na história do Brasil, atropelando o devido processo legal e as cláusulas democráticas. O Poder Judiciário teve uma vinculação orgânica com a ditadura. Foi uma relação muito forte e pouco conhecida. A nossa tradição neste campo é autoritária e não democrática. Há um capítulo do relatório da Comissão Nacional da Verdade que é muito elucidativo sobre isso.
Sul21: Diante deste cenário sombrio que você apresentou aqui, quais seriam as possibilidades e caminhos de resistência?
José Carlos Moreira: Vejo com muito ceticismo a possibilidade de uma resistência por dentro dos meios instituicionais. Já está mais do que demonstrado que o Parlamento, o Executivo, o Judiciário e o Ministério Público estão organicamente articulados e voltados para aprofundar esse processo golpista, o que não quer dizer que não seja importante valorizar os espaços internos de resistência e dissidência. Acredito que boa parte da crise atual veio dessa postura de esperar que tudo viesse dessa esfera institucional, deixando um pouco de lado a mobilização social. O que vai oferecer resistência aos retrocessos em curso é a mobilização na rua. Não vejo muito outro caminho de resistência que não seja esse.
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