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"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

31.10.16

Nada será como antes depois desta primavera estudantil

TODOS E TODAS ANAS JULIAS

Nada será como antes depois desta primavera estudantil

Visitei os alunos do Colégio Estadual do Paraná, que atenderam apelos dos colegas de outras escolas e reviram a decisão de desocupar. E disseram ter crescido mais nesse tempo do que nos cursos
por Emir Sader, para a RBA publicado 30/10/2016 17:05, última modificação 30/10/2016 17:11
REPRODUÇÃO
Ana Julia

Todos eles se reconhecem em Ana Julia, orgulhosos do fato de um deles conseguir romper o cerco da mídia e falar por todos

A reação não se fez esperar e veio de onde menos se esperava: do Paraná. Mais de mil escolas ocupadas pelos estudantes secundaristas, cerca de 80% nesse estado.

O movimento se alastrou como pólvora por todo o Brasil, demonstrando imediatamente como os estudantes não estão dispostos a ter sua educação regida por uma medida provisória do ministro da Educação de um governo que não foi eleito pelo povo. Tampouco os professores, que entraram em greve em vários estados, começando pelo próprio Paraná, e os estudantes universitários também.

O Colégio Estadual do Paraná é o maior e o mais importante do estado. Já completou simplesmente 170 anos, por ali passaram vários dos mais importantes personagens políticos e culturais do estado. Hoje, 6 mil pessoas, entre estudantes, professores, funcionários, entram e saem dali todos os dias.

Foi um dos primeiros em que os estudantes ocuparam em protesto contra a medida provisória de reforma conservadora do ensino médio, e também contra da PEC que levou o numero 241 na Câmara, que limita drasticamente e por muito tempo os recursos para as políticas sociais.

Quando veio a pressão forte do governo do estado para que os estudantes desocupassem as escolas, veio a proposta de que fossem desocupadas 24 unidades e os estudantes se concentrassem no Colégio Estadual do Paraná. Os secundaristas rejeitaram a proposta com o objetivo de que as demais escolas mantivessem sua ocupações – recusaram o "risco" de assumir um protagonismo que violasse a horizontalidade e a autonomia do movimento. E assim decidiram na noite de sexta desocupar a escola no domingo. Mas os alunos das outras escolas pediram que eles continuassem como forma de solidariedade e de manutenção da ação unificada de todo o movimento para seguirem adiante – o que foi aceito, e a desocupação, revista.

Eu estive lá no sábado cedo, conversando com eles. Tinha sido uma noite longa, com uma entrevista para a imprensa feita à meia noite. Às 10h, eles ainda estavam acordando e já organizavam as coisas para desocupar a escola. Foram chegando, simpáticos, cansados, combativos.

Relataram como na noite anterior pessoas do MBL tinham tentado se aproveitar de que muita gente estava concentrada ali, para tentar atacar uma outra escola. Foi possível mobilizar muita gente rapidamente pela internet e logo houve uma concentração de 300 pessoas na outra escola, que escorraçou o tal "movimento". O imenso carro de som emprestado pelo apresentador Ratinho aos milicianos saiu voando quando foram comunicados de que seus pneus seriam furados se não fossem imediatamente embora.

Eu falei um pouco, dizendo que a partir daquele momento a ocupação física das escolas era apenas uma dimensão da ocupação política, educacional, cultural, esportiva, que os estudantes secundaristas estavam fazendo dos seus locais de estudo. Que eles despertaram para o fato de que as escolas não são do governo, são escolas públicas, pertencem à sociedade, aos cidadãos, aos estudantes, aos professores, aos funcionários, aos pais dos alunos. Que não apenas é possível derrotar a MP de reforma do ensino médio, como já nada seria realizado na educação no Brasil e nos estados sem a participação ativa e democrática da comunidade dos estudantes, professores e servidores públicos.

Eles relataram as peripécias daquelas semanas de ocupação, de como se expressou a estudante Ana Julia por todos eles, em pronunciamento na tribuna da Assembleia Legislativa, e como aprenderam mais nesse tempo do que nos cursos burocráticos que costumam receber. Todos eles se reconhecem em Ana Julia, orgulhosos do fato de um deles conseguir romper o cerco da mídia e falar por todos.

Levei exemplares do livro O Brasil que Queremos, para contribuir com as discussões incessantes que eles desenvolvem na ocupação, na escola, nas suas atividades permanentes. Para eles e para toda a juventude estudantil, já nada será como antes, depois desta extraordinária primavera estudantil.


Eugênio Aragão: 'Estamos num silencioso processo de involução'

FRAGILIDADES

Eugênio Aragão: 'Estamos num silencioso processo de involução'

Ex-ministro da Justiça analisa a derrocada de direitos individuais e coletivos, com a degradação das instituições republicanas, e diz que o povo brasileiro assiste a tudo em estado de absoluta inação
por Tiago Pereira, da RBA publicado 31/10/2016 12:13, última modificação 31/10/2016 13:07
ARQUIVO/EBC
aragão

'Não sei por quanto tempo a gente vai poder refletir, mas, enquanto puder, é importante falar', alerta o ex-ministro

São Paulo – A restrição ao direito de greve dos servidores públicos, decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada, que determinou o corte de ponto dos grevistas; a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), segundo a qual a Operação Lava Jato não precisa seguir as regras dos processos comuns, pois "trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas"; a obsessão cega, e ao mesmo tempo seletiva, no combate à corrupção; estudantes sendo algemados em uma escola ocupada; e toda a fragilidade institucional acarretada pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, contestado por parte relevante da comunidade jurídica. Para Eugênio Aragão, o último ministro da Justiça do governo Dilma, estes são sintomas claros de um processo de degradação que atualmente atinge as instituições do país.

"O que a gente não está vendo é que estamos num silencioso processo de involução. Não chamo de silenciosa revolução, porque revolução pressupõe que se vá para frente." Essas são algumas das preocupações demonstradas pelo professor do curso de Direito na Universidade de Brasília (UnB).

"Estamos num momento de profunda degradação do tecido institucional do Estado brasileiro. Estamos desmontando completamente o pacto de 1988 (representado na Constituição Federal que vigora desde então), e, por isso estamos involuindo."

Em entrevista à RBA, Aragão, que retornou à função de procurador do Ministério Público Federal (MPF), afirma que a relação entre os poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) encontra-se em desequilíbrio, critica a superexposição midiática de juízes e procuradores e diz que pode levar uma geração até que as instituições se recuperem.

Para ele, a decisão do STF que validou, por 6 votos a 4, o desconto dos dias paradas de servidores públicos que entrarem em greve, equivale, na prática, a impedir o direito de greve. "Se a Constituição prevê o fim, que é o direito de greve, deve também dar os meios. Tirar do servidor os seus vencimentos, porque está fazendo greve, é impedir a greve", afirma o ex-ministro, para quem a medida parece fazer parte de uma estratégia mais ampla.

"O problema é o seguinte: enquanto a Câmara aprova a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que vai deixar os servidores provavelmente com os seus vencimentos congelados pelos próximos 20 anos, o STF impede a greve. Parece um jogo de bobinho, em que a bola fica entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, e o governado é o bobinho, que fica tentando correr atrás da bola", analisa o professor, que também não poupa críticas ao Supremo por excessiva preocupação com a governabilidade do presidente Michel Temer, preocupação essa que não se viu durante os momentos finais do governo Dilma.

"Me preocupa essa seletividade temática. Se busca bloquear um direito constitucional, ou pelo menos a sua praticidade, para garantir governabilidade para um senhor que se apossou da presidência da República através de uma manobra parlamentar. Tudo isso era muito previsível. Na verdade, a destituição da presidenta Dilma foi o início de um processo de degradação das nossas instituições."

Já sobre os investigadores da Lava Jato, Aragão lembra que o discurso de excepcionalidade para justificar o descumprimento de regras legais, como no caso do vazamento de conversas entre a então presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, que passou sem punição, foi adotado também durante a Alemanha nazista.

Ele ainda afirmou que a exposição excessiva de autoridades da Justiça pela mídia tradicional, desde os promotores da Lava Jato até o ministro Gilmar Mendes, sempre prontos a dar declarações de impacto que virem manchete, colaboram para a sua "desmoralização institucional". Em algum momento futuro, quando houver sinais de pacificação, faz-se "urgentemente" necessário criar medidas que "segurem os excessos do Judiciário e do Ministério Público", ambos, segundo Aragão, atualmente "descarrilhados".

"Desequilibraram o sistema completamente. A gente vê membros do MP atuando claramente com objetivos de seleção de alvos. Estamos vendo um Judiciário enfraquecido, anuindo a tudo isso e também adotando discurso seletivo."

PEC do mal

Frente às ameaças aos direitos individuais e coletivos, e de perdas efetivas – como a PEC 241 – o ex-ministro Eugênio Aragão lamenta a falta de reação da sociedade, e diz que o Brasil vive hoje "um momento surreal, um quadro absurdo de Salvador Dalí", a espera de um comando advindo da mídia tradicional.

"O brasileiro, infelizmente, parece que não tem capacidade de se mobilizar se não tiver um lide (referência ao jargão jornalístico que define o parágrafo principal de uma matéria). Estão perdidos, sem nenhum tipo de rumo, sem norte, assistindo a esse circo pegar fogo com absoluta inação. Parece que há um estado de torpor."

Nesse quadro de enfraquecimento das garantias individuais, Aragão diz que a denúncia dos advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Comitê de Direitos Humanos da ONU, que acusa o juiz Sérgio Moro de cometer uma série de arbitrariedades, é medida importante para "dizer claramente que a comunidade internacional, que não é petralha, não está concordando com o que está acontecendo no Brasil de hoje."

Outras ações que visam a restringir a liberdade de expressão e consciência, como o projeto Escola sem Partido, que tramita no Congresso Nacional, e coloca restrições ao debate de ideias dentro de sala de aula, ou ainda a ação do MPF que mandou retirar cartazes 'Fora Temer' do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, indicam, para o professor, "um processo de fechamento de discurso, que proíbe as pessoas de pensarem 'contramajoritariamente'".

"Não sei por quanto tempo a gente vai poder refletir, mas, enquanto puder, é importante falar. É importante a gente dizer o que está acontecendo, sem medo das consequências. Estamos em um momento que, ou a gente fala, ou depois não vamos poder reclamar mais."

Num cenário sombrio, Aragão afirma que reside nos estudantes que ocupam escolas por todo o país contra a PEC 241 e contra a proposta de reforma do ensino médio do governo Temer, a esperança de um futuro de mais igualdade de direitos. "Vejo jovens tomando atitudes para poder salvar pelo menos o seu pedaço, que é a educação pública. Isso é um alento, e serve de exemplo a nós, adultos."


Paulo Freire

"É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática." Paulo Freire

"Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes." Paulo Freire

28.10.16

Nota da CNBB contra a PEC 241

Nota da CNBB contra a PEC 241

"A CNBB continuará acompanhando esse processo, colocando-se à disposição para a busca de uma solução que garanta o direito de todos e não onere os mais pobres", diz o texto

A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nesta quinta-feira, dia 27 de outubro, durante entrevista coletiva à imprensa, a Nota da CNBB sobre a Proposta de Emenda Constitucional 241 (PEC 241), que estabelece um teto para os gastos públicos para os próximos vinte anos. O texto foi aprovado pelo Conselho Permanente da entidade, reunido, em Brasília, entre os dias 25 e 27 deste mês.
Leia o texto na íntegra:
Brasília-DF, 27 de outubro de 2016
P –  Nº. 0698/16

NOTA DA CNBB SOBRE A PEC 241

"Não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida."
 (São João Crisóstomo, século IV)

O Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunido em Brasília-DF, dos dias 25 a 27 de outubro de 2016, manifesta sua posição a respeito da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, de autoria do Poder Executivo que, após ter sido aprovada na Câmara Federal, segue para tramitação no Senado Federal.

Apresentada como fórmula para alcançar o equilíbrio dos gastos públicos, a PEC 241 limita, a partir de 2017, as despesas primárias do Estado – educação, saúde, infraestrutura, segurança, funcionalismo e outros – criando um teto para essas mesmas despesas, a ser aplicado nos próximos vinte anos. Significa, na prática, que nenhum aumento real de investimento nas áreas primárias poderá ser feito durante duas décadas. No entanto, ela não menciona nenhum teto para despesas financeiras, como, por exemplo, o pagamento dos juros da dívida pública. Por que esse tratamento diferenciado?

A PEC 241 é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública.

A PEC 241 supervaloriza o mercado em detrimento do Estado. "O dinheiro deve servir e não governar! " (Evangelii Gaudium, 58). Diante do risco de uma idolatria do mercado, a Doutrina Social da Igreja ressalta o limite e a incapacidade do mesmo em satisfazer as necessidades humanas que, por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 349).

A PEC 241 afronta a Constituição Cidadã de 1988. Ao tratar dos artigos 198 e 212, que garantem um limite mínimo de investimento nas áreas de saúde e educação, ela desconsidera a ordem constitucional. A partir de 2018, o montante assegurado para estas áreas terá um novo critério de correção que será a inflação e não mais a receita corrente líquida, como prescreve a Constituição Federal.

É possível reverter o caminho de aprovação dessa PEC, que precisa ser debatida de forma ampla e democrática. A mobilização popular e a sociedade civil organizada são fundamentais para superação da crise econômica e política. Pesa, neste momento, sobre o Senado Federal, a responsabilidade de dialogar amplamente com a sociedade a respeito das consequências da PEC 241.

A CNBB continuará acompanhando esse processo, colocando-se à disposição para a busca de uma solução que garanta o direito de todos e não onere os mais pobres.

Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, continue intercedendo pelo povo brasileiro. Deus nos abençoe!

Dom Sergio da Rocha – Arcebispo de Brasília
Presidente da CNBB

Dom Murilo S. R. Krieger, SCJ – Arcebispo de São Salvador da Bahia
Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM – Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB


Nota da CNBB sobre a PEC 241

Transição à ditadura

Transição à ditadura

Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo – a palavra "ditadura" pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata.

lfmiguel-passagem-a-ditaduraPor Luis Felipe Miguel.

Entrei na universidade no mesmo mês em que um civil voltou à presidência da República no Brasil. Depois de mais de vinte anos de regime autoritário, estávamos frente à possibilidade de reconstruir um governo baseado na soberania popular. Esta conjuntura impactou o ambiente em que eu estava entrando; em toda a minha formação acadêmica, da graduação ao doutorado, um tema central de debate, se não o tema central do debate, foi a transição à democracia. Pois na quadra atual da vida brasileira, uma nova agenda de pesquisa se abre: a transição à ditadura.

A palavra "ditadura" pode parecer excessiva, mas é exatamente disto que se trata. Sem discutir extensamente o conceito, é possível afirmar que "ditadura" remete a dois sentidos principais, aliás interligados. Por um lado, como oposto de democracia, indica um governo que não tem autorização popular. Por outro, em contraste com o império da lei, sinaliza um regime em que o poder não é limitado por direitos dos cidadãos e em que a igualdade jurídica é abertamente desrespeitada. O Brasil após o golpe de 2016 caminha nas duas direções.

A destituição da presidente Dilma Rousseff, sem respaldo na Constituição, representou um golpe de novo tipo, desferido no parlamento, com apoio fundamental do aparato repressivo do Estado, da mídia empresarial e do grande capital em geral. Foi um golpe sem tanques, sem tropas nas ruas, sem líderes fardados. Mas foi um golpe, ainda assim, uma vez que representou o processo pelo qual setores do aparelho de Estado trocaram os governantes por decisão unilateral, modificando as regras do jogo em benefício próprio.

Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez prefiram o termo "semidemocracia", mas eu não acredito nesse eufemismo. O regime eleitoral já é uma "semidemocracia", uma vez que a soberania popular é muito tênue, muito limitada. Estaríamos entrando, então, numa "semi-semidemocracia". "Ditadura" é mais direto, corresponde ao núcleo essencial do sentido da palavra e tem a grande vantagem de sinalizar claramente a direção que tomamos: concentração do poder, diminuição da sensibilidade às demandas populares, retração de direitos e ampliação da coerção estatal.

Essa ditadura não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido.

Ou seja: a transição que vivemos é de uma democracia insuficiente para uma ditadura velada. As debilidades do arranjo democrático anterior, que era demasiado vulnerável à influência desproporcional de grupos privilegiados, não serão desafiadas, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, alguns procedimentos até agora vigentes estão sendo cortados, seletivamente, de maneira que mesmo o arranjo formal da democracia liberal vai sendo desfigurado.

A Constituição não foi revogada, mas opera de maneira deturpada e irregular. O caso mais emblemático certamente é a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro poderes de exceção. O tribunal alegou que as características excepcionais das questões nas quais está envolvido Moro tornam facultativo, para ele, o respeito às regras processuais vigentes. É a própria definição de exceção. Na prática, as garantias constitucionais ficaram suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz curitibano. Em suma, lei e Constituição vigoram – ou não – dependendo das circunstâncias e da interpretação que alguns, dotados desse poder, delas fazem.

Duas semanas depois, no dia 5 de outubro, o Supremo Tribunal Federal decidiu permitir o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido esgotados, anulando o princípio constitucional da presunção de inocência. Vendida como medida para impedir a impunidade dos poderosos, amplia o poder discricionário de um Judiciário que é notoriamente enviesado em suas decisões. Apenas como ilustração, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro afirmou em nota que mais de 40% de seus recursos ao STJ têm efeito positivo. É, portanto, um contingente muito expressivo de pessoas que começariam a cumprir penas depois consideradas injustas.

No mesmo dia, o STF ratificou e normatizou decisão anterior, permitindo que a polícia invada domicílios sem mandado judicial. Isso se vincula ao aumento generalizado da truculência policial, contra manifestantes, contra estudantes, contra trabalhadores. É algo que vem desde o final do governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação – e também, é necessário ser dito, pela legislação que o próprio governo Dilma aprovou.

Cumpre assinalar também a volta da tortura a prisioneiros, com motivação política. O encarceramento por tempo indefinido, com o objetivo expresso de "quebrar a resistência" de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à delação, tornou-se rotina no Brasil e é uma forma de abuso de poder, de constrangimento ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de que alguém lembre que a tortura a presos comuns nunca se extinguiu no Brasil, cabe ponderar que a extensão da prática em nada melhora a situação dos presos comuns; ao contrário, pode piorá-la.)

Fica claro que o poder judiciário não está cumprindo o papel de garantidor das regras, o que já fora demonstrado durante o processo de impeachment ilegal. Como sabemos, parte do judiciário foi partícipe ativa do golpe, parte foi cúmplice silenciosa, mas não se encontra ninguém, nas cortes superiores, que tenha se levantado em defesa da democracia brasileira.

Continuamos a ter eleições. No entanto, as condições da disputa, que sempre foram desiguais, dado o controle dos recursos materiais e dos meios de comunicação de massa, estão ainda mais assimétricas, com a campanha incessante de criminalização do Partido dos Trabalhadores e de todo o lado esquerdo do espectro político. Para as eleições presidenciais de 2018, a grande questão que se coloca à esquerda é se o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva terá condições legais de concorrer. Em relação a seus potenciais concorrentes à direita, todos atingidos por denúncias de corrupção mais graves e com evidências mais sólidas do que aquelas apontadas contra Lula, tal preocupação não existe. E a delegação de poder por via eleitoral foi desmoralizada com a destituição da presidente legítima. Caminhamos para uma situação de disputa eleitoral quase ritualística, com cerceamento das opções colocadas à disposição do eleitorado e tutela dos eleitos.

Essa criminalização do PT e da esquerda em geral é alimentada pelos meios de comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora para a campanha do governo Temer sobre "tirar o país do vermelho". A agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários torna-se uma possibilidade mais palpável.

O cerco ao ex-presidente Lula, em que uma parte importante do aparelho repressivo do Estado vem sendo mobilizada com o intuito de conseguir provas de uma culpa determinada de antemão, é outro sintoma claro de que deslizamos para um estado de exceção. Quando vigora o império da lei, a investigação sucede à descoberta de evidências que sustentem suspeitas. Se, ao contrário, decide-se promover uma devassa na vida de alguém na esperança de encontrar algo incriminatório, estando depois os juízes "condenados a condenar", como disse o próprio Lula, não temos mais a igualdade legal. O sistema judiciário funciona na sua aparência, mas perdemos a possibilidade de evocar os valores que deveriam presidi-lo a fim de garantir a vigência das liberdades.

Em suma, a ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um projeto claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser implantado sem que se busque sequer a anuência formal da maioria da população, por meio das eleições.

O sintoma mais claro da ditadura que se implanta é a paulatina redução da possibilidade do dissenso. Ela vem aos poucos, mas continuamente. Dentro do Estado, do Itamaraty ao IPEA, não há praticamente espaço em que a caça às bruxas não seja pelo menos insinuada. Vista como foco potencial de divergências, a pesquisa universitária está sendo estrangulada. Decisões judiciais coibindo críticas – em primeiro lugar ao próprio Judiciário e seus agentes, mas não só – tornaram-se cada vez mais costumeiras. Juízes e procuradores, embalados pela onda da campanha mistificadora do Escola Sem Partido, intimidam professores e estudantes que queiram debater em escolas e universidades. O MEC se junta à campanha, exigindo, como fez na semana passada, que estudantes mobilizados sejam denunciados pelas administrações universitárias. É todo um processo de normalização do silenciamento da divergência que está em curso.

O avanço da censura está ligado à imposição da narrativa única pelos oligopólios da comunicação, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso se dá em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de comunicação independentes, uma política buscada deliberadamente pelo governo Temer – que, ao mesmo tempo, ampliou de forma significativa a remuneração oferecida aos grupos da mídia empresarial.

Enquanto isso, medidas que impactam seriamente a vida nacional, mudando a lei e a Constituição, são levadas adiante sem qualquer tipo de debate – seja com a sociedade, seja dentro do próprio Congresso Nacional. É um governo que impõe sua vontade, escorado na cumplicidade dos meios de comunicação e no apoio fisiológico da maior parte dos parlamentares. Com isso, não há sequer uma pantomima para fingir que ocorre discussão no Congresso; os projetos tramitam com velocidade recorde, atropelando todos os prazos. Por vezes, praticamente só a oposição discursa – os governistas querem simplesmente cumprir o ritual, o mais rápido que possam. Não há espaço para negociação, nem necessidade de justificação pública aprofundada.

São muitos os exemplos, mas cito apenas três. A reforma do ensino médio, apresentada sem discussão com pedagogos, professores ou estudantes, por meio de medida provisória. Sem discutir os méritos da reforma ou mesmo o fato de que ela foi justificada com a apresentação de dados falsificados do ENEM, trata-se de uma medida com profundas e complexas implicações, que não poderia prescindir de amplo debate.

O segundo exemplo é a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras, rompendo o consenso sobre a exploração do petróleo brasileiro, construído ao longo de décadas. Por fim, a proposta de emenda constitucional nº 241, que congela o investimento social por vinte anos. Num caso como no outro, são decisões de enorme gravidade, na contramão da vontade popular sistematicamente expressa nas eleições – jamais, na história brasileira, o entreguismo ou a ideia de redução do investimento social foram capazes de ganhar eleições competitivas. Quando chegaram ao governo, foi em períodos de exceção ou por meio de manipulação e ocultamento na campanha eleitoral.

Seja no caso da entrega do pré-sal, seja no caso da PEC de estrangulamento do investimento público, o debate foi próximo do zero. Com os diferentes grupos da sociedade civil, não se travou nenhum tipo de discussão. Com a opinião pública, o debate foi trocado por uma ofensiva de desinformação, que culminou na equívoca campanha publicitária governamental já citada, a do "tirar o país do vermelho". No Congresso, a base governista sequer tentou fingir que não estava apenas cumprindo o ritual da aprovação parlamentar. Não houve qualquer engajamento em discussões com a oposição.

O fim do monopólio sobre a exploração do pré-sal e a PEC 241 indicam, não por acaso, o programa da ditadura em implantação. A conciliação de classes que os governos do PT tentavam implementar foi rompida unilateralmente pela burguesia. Afinal, são necessários dois para conciliar – adaptando o dito popular, quando um não quer, dois não conciliam. Trata-se, então, de reverter quaisquer vantagens que as classes trabalhadoras e outros grupos subalternos tenham obtido.

Um elemento importante é o caráter misógino do retrocesso. O golpe retirou da presidência uma mulher, e o fato de que era uma mulher não foi irrelevante. Nós vimos as faixas ofensivas à presidente Dilma Rousseff nas manifestações pelo impeachment. Nós vimos os adesivos pornográficos nos automóveis. Nós vimos as reportagens na imprensa que serviu ao golpe, requentando estereótipos sexistas contra a presidente da República. Nós testemunhamos os integrantes da elite política com suas falas desdenhosas, em que o preconceito de gênero ocupava um lugar que não era desprezível.

Não se trata apenas do processo de construção da derrubada da presidente eleita. O governo atual está comprometido com o retrocesso na condição feminina, com o reforço de sua posição subordinada e do fechamento da esfera pública a elas. Não se trata apenas do retrocesso simbolizado no ministério formado exclusivamente por homens brancos, embora ele seja significativo. Como também é significativo o retorno do chamado "primeiro-damismo", em que o papel concedido à mulher na política é o da bem-comportada auxiliar de seu marido, sorrindo nos jantares e patrocinando programas assistenciais. Além disso, há o recrudescimento do discurso familista, que é aquele de exaltação da família tradicional, marcada exatamente pela submissão da mulher. Esse discurso não ressurge por acaso ou apenas por algum tipo de reacionarismo atávico dos novos donos do poder, mas vinculado à política de retração do investimento social e de destruição do nosso incipiente sistema de bem-estar social. Com isso, a responsabilidade pelo cuidado com os mais vulneráveis recai integralmente sobre as famílias, isto é, sobre as mulheres, como o celebrado discurso de estreia de Marcela Temer indicou com clareza exemplar.

A implantação desse programa exige o silenciamento das vozes contrárias a ele. Trata-se de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande maioria do povo brasileiro. Graças à baixíssima educação política da maior parte da população e à campanha incessante da mídia, para muita gente a ficha não caiu. Mas os efeitos da redução dos salários, do aumento do desemprego, do subfinanciamento do Estado e do desmonte dos serviços públicos logo se farão sentir de forma plena. Para conter a inevitável reação popular, será necessária uma escalada repressiva e restrições cada vez maiores aos direitos.

Essa é a agenda de pesquisa que se abre no momento. Uma dimensão é a retração dos direitos e o desfiguramento das instituições democráticas. Outra é resistência popular que certamente se construirá. Torço para que esta segunda dimensão nos dê muito material para pesquisar, o mais rapidamente possível.

(Este artigo é baseado na intervenção que fiz na mesa-redonda "Conjuntura política", na última terça-feira, durante o 40º Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais – Anpocs.).

dossiê especial de intervenção "Não à PEC 241", do Blog da Boitemporeúne artigos, entrevistas, análises e vídeos que destrincham de perspectivas diversas o contexto, o processo, a agenda e os efeitos da PEC 241. Lá você encontrará reflexões de Laura Carvalho, Ruy Braga, Flávia Biroli, Guilherme Boulos, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Silvio Luiz de Almeida, João Sicsú, Adalberto Moreira Cardoso, Rosane Borges, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Jorge Luiz Souto Maior, Maurílio Lima Botelho, Antonio Martins, Renato Janine Ribeiro, Jessé Souza, entre outros, além de uma agenda das manifestações de rua contra a Proposta de Emenda à Constituição 241.

***

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.


27.10.16

A estudante Ana Júlia Ribeiro, 16 anos, discursa na Assembleia Legislativa do Paraná

Ana Julia Ribeiro, da escola Senador Manuel Alencar Guimarães, discursa no plenário da Alep



A sorte do Brasil é que, para cada Janaína, temos estudantes como a paranaense Ana Júlia. Por Kiko Nogueira

Postado em 26 Oct 2016
Ana JúliaAna Júlia

Quando você achar que está na hora de se mudar para o Uruguai, quando você vir que o Brasil pariu Janaína Paschoal, quando você ouvir Alexia Deschamps — lembre-se da estudante Ana Júlia Ribeiro.

Aos 16 anos, a menina deu uma aula de democracia aos deputados da Assembleia Legislativa do Paraná na sessão plenária de quarta, dia 26.

Foi convidada a contar por que as escolas estão sendo ocupadas. Diante daqueles senhores, emocionada mas sob controle, com calma e contundência, inteligência e articulação, Ana explicou suas razões.

"Sabemos pelo que estamos lutando. A nossa única bandeira é a educação", começou.

"Somos um movimento dos estudantes pelos estudantes, que se preocupa com as gerações futuras, com a sociedade, com o futuro do Brasil. É por isso que nós ocupamos as nossas escolas".

Para ela, "é um insulto sermos chamados de doutrinados. É um insulto aos estudantes e aos professores".

A Escola sem Partido, diz AJ, "é uma escola sem senso crítico, é uma escola racista, homofobia. É falar para os jovens que querem formar um exército de não pensantes, um exército que ouve e baixa a cabeça. Não somos isso. Escola Sem Partido nos insulta, nos humilha, nos fala que não temos capacidade de pensar por nós mesmos".

Acusou os parlamentares de terem "sangue nas mãos" pela morte do garoto Lucas Eduardo Araújo Mora. Imediatamente o presidente da Casa, Ademar Traiano, vestiu a carapuça e ensaiou uma censura. Ana prosseguiu.

Enquanto houver Ana Júlia, há esperança.

Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=8gGpuwZlNcg.

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Sobre o Autor
Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.




ENTREVISTA EXCLUSIVA COM ANA JÚLIA

Estudante secundarista que deu um show na Assembleia Legislativa do Paraná fala com exclusividade aos Jornalistas Livres sobre as ocupações. Os pais de Ana Júlia estão acompanhando as ocupações, declaram apoio e convidam à todos os pais a conhecerem a luta e a organização dessa garotada de luta!

Vídeo - Paulo Jesus, especial para os Jornalistas Livres: 






26/out/2016, 21h45min

A estudante Ana Júlia Ribeiro, 16 anos, cala a Assembleia Legislativa do Paraná

Do Jornal GGN

Uma menina de 16 anos, Ana Julia Ribeiro, estudante secundarista, dá uma aula de cidadania na Assembleia Legislativa do Paraná (https://www.youtube.com/watch?v=oY7DMbZ8B9Y). A jovem consegue ser tudo: informada, cidadã, contundente, doce, emocionada, feroz. Ela representa a juventude brasileira que hoje se posiciona, e ocupa escolas por todo o país. Ela ensina como é que deve ser o exercício de se posicionar, se colocar frente às realidades do país, enfrentar as adversidades e a tristeza de perder um amigo para uma sociedade que não sabe o que é que está acontecendo hoje. A estudante coloca a juventude no seu lugar: o de construtores de uma nova Nação, uma Nação que se importa com seus cidadãos. Ela é tudo o que os adultos precisariam ser: íntegra! Use dez minutos de sua vida e entenda o que é ser um cidadão, um ser que luta por um país justo, por uma educação de primeira. Ela aborda a PEC 241, a Lei da Mordaça, a saúde, a educação, a assistência social, o futuro, e critica a criação de uma sociedade sem cérebro. Palmas para os estudantes em luta! Palmas para Ana Julia!

http://www.sul21.com.br/jornal/a-estudante-ana-julia-ribeiro-16-anos-cala-a-assembleia-legislativa-do-parana/



Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz