"Hoje – e este hoje já faz um bom tempo – a desumanidade e injustiça da pobreza, a ignorância de suas causas e a percepção de sua complexidade, extensão e profundidade, tenhamos ou não uma experiência direta dela, não pode ser desculpada. É um conhecimento que constitui uma pauta importante para apreciar a qualidade – e a eficácia – humana e cristã da solidariedade com o pobre", escreve o teólogo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez, em fragmento de um artigo escrito para um livro em homenagem a Aloysius Pieris, Encounter with the Word (Sri Lanka,The Ecumenical Institute for Study and Dialogue), e publicado por Reflexión y Liberación, 22-04-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A pobreza é uma realidade multifacetada, desumana e injusta: consequência, sobretudo, da forma como se pensa e se organiza a vida em sociedade.
Um fato complexo
A pobreza é um fato complexo. Não se limita, portanto, sem que isto signifique negar sua importância, à vertente econômica. A realidade de países plurirraciais e pluriculturais, assim como são boa parte dos latino-americanos, o Peru entre eles, colocou-nos rápido e diretamente diante dessa diversidade. Visão reforçada pela complexa compreensão que a Escritura, nos dois testamentos, tem dos pobres: os que mendigam para viver, as ovelhas sem pastor, os ignorantes da Lei, aqueles que são chamados "os malditos" no Evangelho de João (7, 49), as mulheres, as crianças, os estrangeiros, os pecadores públicos, os enfermos de males graves.
Presente desde um início, como problema e como enfoque, esta complexidade (realidade que hoje as agências internacionais começaram a destacar) foi aprofundada pela reflexão teológica latino-americana, acompanhando diversas linhas, nos anos seguintes. Precisamente, a consciência dessa multidimensionalidade levou às recentes expressões de 'não pessoa' e de 'insignificante' para nos referir aos pobres. Com elas, desejava-se enfatizar o que todos os pobres possuem em comum: a ausência do reconhecimento de sua dignidade humana e de sua condição de filhas e filhos de Deus, seja por razões econômicas, como também raciais, de gênero, culturais, religiosas ou outras.
Condições humanas, estas últimas, que a mentalidade dominante de nossas sociedades não valoriza, criando uma situação desigual e injusta.
Injustiça, não infortúnio
A pobreza não é uma fatalidade, é uma condição. Não é um infortúnio, é uma injustiça. É resultado de estruturas sociais e de categorias mentais e culturais. Está relacionada ao modo como a sociedade foi construída, em suas diversas manifestações. É fruto de mãos humanas: estruturas econômicas e atavismos sociais, preconceitos raciais, culturais, de gênero e religiosos acumulados ao longo da história, interesses econômicos cada vez mais ambiciosos; portanto, sua abolição também está em nossas mãos.
Atualmente, dispomos dos instrumentos – sujeitos ao exame crítico de rigor – que permitem conhecer melhor os mecanismos econômico-sociais e as categorias em jogo. Analisar essas causas é uma exigência de honestidade, e, para dizer a verdade, o caminho obrigatório, caso queiramos realmente superar um estado de coisas injusto e desumano. Ponto de vista que – sem esquecer que na pobreza dos povos intervém fatores variados – revela o papel que a responsabilidade coletiva possui neste assunto e, em primeiro lugar, a daqueles que possuem maior poder na sociedade.
Reconhecer que a pobreza não é um fato inelutável, que tem causas humanas e que é uma realidade complexa, leva a repensar as formas clássicas de atender a condição de necessidade na qual se encontram os pobres e insignificantes. A ajuda direta e imediata a quem vive uma situação de necessidade e injustiça conserva seu sentido, mas deve ser reorientada e, ao mesmo tempo, ir além: eliminar o que dá lugar a esse estado de coisas.
Apesar da evidência do assunto, não se pode dizer, no entanto, que esta perspectiva estrutural tenha se tornado uma opinião generalizada no mundo de hoje, nem tampouco em ambientes cristãos. Falar de causas da pobreza faz ver a delicadeza e, na verdade, a dimensão de conflito do problema, razão pela qual muitos buscam evitá-las.
Uma situação que se agrava
Ao anterior, acrescentam-se outros elementos da nossa atual percepção da pobreza que devem ser considerados
Um deles é a dimensão planetária da situação em que se encontra a grande maioria da população mundial. Isto vale para o conjunto do que entendemos por pobreza, ainda que muitas vezes os estudos a esse respeito insistam muito mais em sua vertente econômica, sem dúvida a mais fácil de medir. Por longo tempo, as pessoas só conheceram a pobreza que tinham perto, em sua cidade ou, no máximo, em seu país. Sua sensibilidade, quando existia, limitava-se, explica-se, ao que tinham diante dos olhos e, literalmente, ao alcance da mão (para dar uma ajuda direta, por exemplo). As condições de vida de então não permitiam ter um entendimento suficiente da extensão desse estado de coisas. Isto mudou, qualitativamente, com a facilidade de informação que se foi adquirindo. O que antes era distante e remoto, tornou-se próximo e cotidiano. Além disso, os dados e os estudos sobre a pobreza massiva, realizados por inúmeras organizações em nossos dias, multiplicam-se e traçam seus métodos de investigação. Não podem ser ignorados.
Outro traço que também modificou nossa aproximação com a pobreza é seu aprofundamento e o aumento da distância entre as nações e pessoas mais ricas e as mais pobres. Isto, na avaliação de certos economistas, está levando ao que se qualificou de 'neodualismo': a população mundial se coloca cada vez mais nos dois extremos do espectro econômico e social. Uma das linhas divisórias é o conhecimento científico e técnico que se constituiu o eixo mais importante de acumulação na atividade econômica e cujos avanços aceleraram a já desenfreada exploração – e depredação – dos recursos naturais do planeta, que são um patrimônio comum da humanidade. Estes fatores aumentaram a distância que mencionávamos.
Não obstante, o assunto não se limita ao aspecto econômico da pobreza e à insignificância. No espaço criado por essa disparidade crescente, intervêm e se entrecruzam os elementos mencionados anteriormente: os que vem do terreno econômico, por um lado, com os referentes às questões de ordem cultural, racial e de gênero, por outro. Este último levou a se falar, com razão, de uma feminização da pobreza. Com efeito, as mulheres constituem o setor mais atingido pela pobreza e a discriminação, principalmente se pertencem a culturas ou etnias desprezadas. Embora a questão agora tenha alcançado proporções escandalosas, o processo de acentuação dessa distância estava em marcha há décadas, o que explica o alvoroço que já provocava, desde então.
Hoje – e este hoje já faz um bom tempo – a desumanidade e injustiça da pobreza, a ignorância de suas causas e a percepção de sua complexidade, extensão e profundidade, tenhamos ou não uma experiência direta dela, não pode ser desculpada. É um conhecimento que constitui uma pauta importante para apreciar a qualidade – e a eficácia – humana e cristã da solidariedade com o pobre.
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