ÀS CLARAS
A grande farsa do golpe, as biografias e as reputações
Se derrotada, Dilma será lembrada como condutora de um governo desatinado, mas que foi vítima de grande injustiça
Aos poucos, a grande farsa, montada em torno da atual crise política para justificar o golpe e para dar-lhe aparência de legalidade constitucional, vem rompendo suas muralhas de contenção disseminando o seu cheiro fétido junto à opinião pública. Não se sabe se ainda há tempo para evitar o rompimento dessa barragem da Samarco política montada pelos golpistas. Mas a pesquisa do Datafolha do final de semana sinaliza que parte importante da sociedade já pressente o desastre que os dejetos camuflados podem produzir, transformando o Brasil numa imensa Mariana.
A pesquisa é singular tanto por aquilo que os números não revelam, quanto por aquilo que eles revelam. Eles não revelam, contudo, insinuam o desmonte da farsa política do golpe. A queda do apoio ao impeachment, de 68% para 61%, mostra que o mesmo está longe de ser uma quase unanimidade. A sociedade vai percebendo aos poucos que querem substituir um governo que tem o respaldo soberano das urnas por um governo sem votos e, portanto, um governo ilegítimo. A opinião pública vai percebendo que se montou um grande condomínio de corruptos para, em nome do combate à corrupção, derrubar o governo.
Mesmo aqueles que protestam nas ruas contra o governo sabem que os políticos golpistas são corruptos e que os próprios golpistas sabem que são corruptos. "Ladrão. Você também é ladrão. Você sabe que também é ladrão", foi o que disse um manifestante a Aécio Neves, na Avenida Paulista, no protesto do último dia 13 de março. Essa frase é simbólica no sentido de revelar que a farsa da oposição, articulada com a traição de Michel Temer, não prosperou junto à sociedade.
A sociedade sabe que o mesmo dinheiro que financiou Dilma, financiou Aécio; que o mesmo dinheiro que financiou o PT, financiou o PSDB, o PMDB, o PSB, o DEM, o PPS, o Solidariedade etc. A sociedade sabe que pedaladas fiscais praticadas por Dilma, foram praticadas por Fernando Henrique e por Lula e que vêm sendo praticas por mais da metade dos atuais governadores. A sociedade sabe que as oposições que se aproveitam do atual momento da crise são oportunistas. É emblemático que isto tenha sido dito à comitiva de Aécio Neves na Avenida Paulista: "oportunistas", "bundões".
O desmonte da farsa e a mancha nas biografias
Agora, o desmonte da farsa começa a se traduzir em números. O Datafolha mostra que todos os pretendentes tucanos às eleições presidenciais de 2018 despencaram. E, mesmo sob um verdadeiro massacre da mídia, da oposição e da Lava Jato, Lula consegue crescer nas intenções de voto. Independentemente do que irá ocorrer em 2018, os números revelam os movimentos de percepção da opinião pública acerca da atual crise. A própria queda de apoio ao juiz Moro, de 90% para 60%, indica que os abusos, as arbitrariedades e a parcialidade com ele e os procuradores vêm conduzindo a Lava Jato são práticas cada vez mais percebidas pela população. Moro mandou prender Deus e o mundo, mas até agora, por exemplo, não mandou prender a esposa e a filha de Eduardo Cunha, envolvidas em graves denúncias.
As farsas não sobrevivem ao juízo dos tempos e da história. Alguns farsantes são descobertos ainda em vida; outros, depois que viraram cinza e pó. George W. Bush criou a grande farsa das "armas de destruição em massa" para justificar a invasão do Iraque. A recriminação e o opróbio o tolheram ainda em vida. O mesmo está acontecendo com os golpistas brasileiros.
Que tipos como Aécio Neves, Ronaldo Caiado, Carlos Sampaio, Jair Bolsonaro, Gilmar Mendes, Augusto Nardes, entre outros, não se importem com as suas biografias e reputações, é compreensível. Que figuras como Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Aloísio Nunes, entre outros - que têm uma história de combate democrático - joguem suas biografias na farsa pardacenta do golpe é de se lamentar.
Partindo do pressuposto de que quase todos os partidos se financiam da mesma forma e, diante da fraqueza do governo, faltou grandeza ao PSDB. Ao invés de fazer uma oposição forte, programática, capaz de constituir-se em alternativa eleitoral para 2018, o PSDB se deixou levar pela vendeta política de Aécio Neves, investindo no "quanto pior melhor", nas pautas-bomba que elevam o gasto público, na divisão do Brasil, na disseminação do ódio e da violência física, alimentando os grupos fascistóides.
O PSDB teria prestado um enorme serviço ao Brasil e a si mesmo, se tivesse apostado num programa de reformas, se tivesse constrangido politicamente o governo através de suas propostas, se tivesse buscado um enraizamento social pelas suas ideias e valores. Mas, não: preferiu deixar-se dominar pela fúria destrutiva da vingança, merecendo a reprovação até mesmo daqueles que são oposição ao governo. O PSDB, ao caminho que poderia conduzi-lo à glória, preferiu o caminho do opróbio; ao caminho da responsabilidade, preferiu o caminho da inviabilidade do governo; ao caminho do compromisso democrático, preferiu o caminho do oportunismo. O PSDB poderia ter tido a grandeza de reconhecer que a crise é fruto dos erros do PT e do governo, mas que vai além desses erros; de que o PT se corrompeu no financiamento de campanhas, mas que quase todos os partidos estão incursos nessas mesmas práticas; e que era preciso sentar para negociar uma saída reformadora em benefício da sociedade e do Brasil. Mas preferiu apequenar-se, enxovalhando biografias e reputações.
Temer e Dilma
Quando a Michel Temer, se o impeachment for barrado, não será mais nada. Se o impeachment for aprovado, carregará a marca da traição e da ilegitimidade. Será contestado por boa parte da sociedade e sofrerá uma dura oposição dos movimentos sociais. O mais provável é que venha a ser derrubado em pouco tempo. Mas se não for, e mesmo que consiga fazer alguma coisa, jamais alcançará uma boa reputação, pois não se pode reputar bem os traidores, aos ressentidos, os interesseiros e os oportunistas. Diante dos extravios de Dilma, Michel Temer também teve a oportunidade de passar para a história como o vice-presidente sereno, equilibrado, sensato, contribuindo para conduzir o governo no leito da prudência. Quando veio a crise, começou a esgueirar-se nas sombras, conduzindo-se pela dubiedade, chamando as desconfianças sobre seus ombros. Tal modo de agir poderá leva-lo ao poder, a um poder ilegítimo, que poderá ser efêmero, mas não à glória de um estadista.
Se Dilma for derrotada, será lembrada como condutora de um governo desatinado, mas que foi vítima de uma grande injustiça, de um golpe. Se o golpe for derrotado, poderá resgatar-se, desde que mude radicalmente o seu modo de ser político – algo difícil de ocorrer. Terá que decidir se quer governar com o apoio dos movimentos sociais que a salvaram, mas que ganharam autonomia e força, ou se continuará no mesmo método das "transações" pelo alto, dos conluios com as elites, contrários às reformas capazes de confrontar as condições de iniquidade e injustiça social do Brasil.
O Frei Beto tem razão ao afirmar que "o PT só se lembrou dos movimentos sociais na hora de apagar os incêndios". Bolsa Família, Prouni, Minha Casa Minha Vida são migalhas se comparadas aos grandes incentivos e desonerações que o capital recebe e ainda faz campanha para "não pagar o pato" que jamais pagou. Ou Dilma e o PT - se se salvarem - se comprometem com um ajuste que preserve os direitos sociais e com um programa de reformas estruturais para o desenvolvimento e combate às desigualdades ou terão uma oposição dos movimentos sociais e de uma nova esquerda que vem brotando desse processo de defesa da democracia.
*Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
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