"Nos falta um pouco de sonho"
Cidades
03 de julho de 2015 às 13:59 hr
Fabiano Finco
Um dos maiores pensadores do Brasil, Leonardo Boff esteve ontem na Universidade de Caxias do Sul (UCS) para realizar a palestra de abertura do Seminário de Pesquisa em Turismo do Mercosul, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da UCS. Antes de abordar o tema 'Hospitalidade, Ética e Turismo', Boff concedeu entrevista, ocasião na qual discorreu sobre temas como manifestações sociais, ecologia e o futuro da Terra - o que, para ele, não é o dos melhores. "Nunca antes na história vivemos ameaças e situações tão graves. Se não cuidarmos da "Casa Comum", poderemos conhecer um caminho sem retorno", avisou.
Autor de mais de 60 livros nas áreas da teologia, ecologia, espiritualidade, filosofia e antropologia, Boff, 77 anos, é entusiasta da Teologia da Libertação e dos Direitos Humanos, mas antes de tudo um otimista em relação ao futuro. "Vivemos uma situação de caos, mas temos de apostar no lado construtivo e generativo do caos. É preciso combater o poder negativo do caos por meio de uma mudança de comportamento, de estilo de vida. Precisamos buscar paradigmas novos, que sejam mais justos, mais benevolentes para com a Terra e para com a vida". Confira abaixo principais trechos da entrevista.
Formação intelectual - "Venho da teologia e da filosofia, e a partir de então estabeleci, já há muitos anos, diálogos com outros saberes, especialmente ligados aos Direitos Humanos, à ecologia, à interpretação das crises da cultura e da política entendida como busca pelo bem comum. Tenho trabalhado também sob a perspectiva da ética, que é hoje um dos grandes vazios da humanidade, sempre na perspectiva de afastar as ameaças que pesam sobre o sistema da vida e sobre o sistema da Terra".
A fase que vivemos
"É uma fase única, que nunca tivemos antes, que é a fase planetária. É aquilo que Teilhard de Chardin (o teólogo francês Pierre Teilhard de Chardin,1881/1955) já dizia nos anos 30: "O tempo das nações passou, temos que construir a Terra". É a descoberta de que somos uma espécie só, de que temos uma única casa para morar. Então temos de não só conhecer as coisas, mas ter consciência de que estamos numa fase nova, que representa desafios novos. O principal desafio é que há um risco global que exige uma solução global, e essa solução não estamos encontrando porque a maioria ainda vive no regime das nações, buscando interesses nacionais, e não globais. Eu acho que um debate assim, promovido por essa universidade, uma entrevista como essa, é uma forma de despertar para essa fronteira nova da história da Terra e de nós, seres humanos".
Papa Francisco e a Encíclica do Cuidado da Casa Comum
"Estamos diante de uma situação de caos, mas o caos tem duas dimensões. O caos destrutivo, tudo aquilo que é agregado e não funciona mais, e o lado construtivo, generativo do caos, que é quando o caos sempre gera uma coisa nova, um salto de qualidade em direção de uma nova ordem. Queremos que a dimensão generativa do caos prevaleça sobre a destrutiva, que é altamente poderosa. Quem vai para a Itália, Espanha, fica espantado ao ver as paróquias abrindo comedores públicos porque os milhares de desempregados não tem onde comer. Isso não aparece na imprensa porque é anti-sistêmico. Temos que mudar, e nos faltam lideranças, com exceção do Papa Francisco e do Dalai Lama. A maioria dos chefes de estado são frutos das escolas de administração, são burocratas, não governam o povo, só administram o capital. Por outro lado, a mídia social está destruindo os heróis, porque cada um é herói, cada um pode dizer a sua palavra, o seu pensamento. Eu fico espantado, ao entrar nas mídias sociais, com a quantidade de bobagens, de acusações e de blasfêmias que são ditas".
Movimentos sociais
"Uma pesquisa de dois grandes centros, dos Estados Unidos e da Suíça, analisou 30 milhões de empresas, e chegou à conclusão de que 723 pessoas controlam 80% de todo o fluxo econômico do mundo. São essas pessoas que decidem: vamos para o Brasil tirar dinheiro de lá, vamos para a Indonésia tirar dinheiro de lá. Os donos do mundo são eles, não os governos. Um dos pontos de assalto agora é o Brasil, não pela sua economia, mas pela riqueza ecológica. Eles sabem que a economia futura será a da natureza, porque nós temos que respirar, temos que beber, ninguém come papel, ninguém come ações das bolsas. A imprensa não diz, mas o Brasil é o país que tem mais investimentos no mundo, feito por empresas exploradoras. Nós temos que resistir, e aí entram os movimentos sociais, como o MST, por exemplo. Mas a resistência pode vir de todos os cantos, dos jovens, das Igrejas. Porém, não adianta só resistir, é preciso avançar com novas idéias de se relacionar com a natureza".
As manifestações sociais
"Sempre fui pela democracia, todos têm direito de se manifestar, sejam com panelas vazias ou cheias. Só que quem vai de panela cheia é diferente de quem se manifesta com panela vazia, porque quem vai com panela cheia às vezes nem sabe onde fica a cozinha de sua casa. Manifestações têm conteúdos diferentes, e temos de respeitar isso".
"Temos de saber trabalhar as contradições, precisamos trabalhar da forma que se busque convergências, porque somos um dos países mais desiguais do mundo, e isso, em termos éticos, significa um dos mais injustos do mundo".
Globalização
"Vivemos uma crise sistêmica. O sistema que até agora imperou não está funcionando em nenhuma parte do mundo, nem nos países centrais. A tragédia da Grécia, por exemplo: a gente vê números econômicos, mas não sabemos dos milhares de suicídios no país, das milhares de crianças colocadas nas portas dos mosteiros com um bilhete "meu filho está morrendo de fome, por favor faça ele viver". Por trás das estatísticas há verdadeiras via-sacras do sofrimento humano que devem ser entendidas. Devemos ler os dados afetivamente, não só com inteligência intelectual, mas também com inteligência emocional, cordial, que vê, por detrás, seres humanos. Então a crise sistêmica criou espaço para o pensamento da ordem, da disciplina, de colocar limites para todas as coisas, que é o pensamento da Direita, e isso está avançando no mundo inteiro. É preciso perceber que desenvolvimento não se rege pelo PIB ou pelo crescimento material, mas em consonância com o clima, com os ecossistemas. Não basta apenas um desenvolvimento sustentável, é preciso um desenvolvimento alternativo, que tenha como objetivo não a acumulação, mas a vida".
O papel da universidade
"A universidade tem duas funções básicas: uma é criar os quadros que façam funcionar a sociedade, como médicos, engenheiros... Por outro lado, ela sempre foi o campo da inovação, dos novos pensamentos, das utopias, da contestação, da criação do novo, e é esse papel que ela tem de assumir fortemente. A universidade não pode ser a chocadora do sistema, tem de ser a criadora de sonhos novos que vão fazer andar nossa sociedade, formar pessoas que tenham outra visão, uma sociedade dinâmica. Há esse embate nas universidades. Vejo em várias universidades do Brasil jovens profundamente despolitizados, que só pensam em se formar, ter uma boa profissão e ganhar dinheiro. Claro que tem de ganhar dinheiro, mas é preciso construir uma nação, servir ao povo, ter ligação com bem comum. Esse é um desafio ético, falta um pouco de sonho..."
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