Especial 50 anos do Golpe
Ninguém vai ser punido por torturar minha mãe?
Está lá no meu RG: "Naturalidade: Rio de Janeiro". Na cédula de identidade do meu irmão também. E só. Pai, mãe, tios, avós... mais ninguém da minha família nasceu na cidade. Adoro o Rio, mas não me sinto carioca. Nasci lá exclusivamente por causa do golpe, 10 anos antes de eu nascer.
Como fui parar lá? Minha mãe teve de abandonar o curso de História na USP quando faltava só um semestre para terminar. Era boa aluna e nunca terminou porque, como tantos outros, abandonou para não ser presa. A polícia estava toda hora na Cidade Universitária, procurando e levando pessoas, e chegou uma hora que ela não podia mais ir às aulas ou à casa de amigos. E, por fim, não podia mais ir à própria casa. Foi quando meu pai e ela, ainda namorados, foram para clandestinidade, alugando uma casa que ninguém nunca soube onde era e que, para este texto, meu pai me contou que ficava na rua Atílio Inocentti.
Nesses tempos de faculdade, Sônia (minha mãe) era militante do POC, o Partido Operário Comunista. Era uma organização, como se dizia à época, de proselitismo. Ou seja, não pegava em armas. Faziam reuniões, panfletavam, discutiam e imaginavam como poderiam derrubar a ditadura civil-militar e reinstalar a democracia.
A clandestinidade em São Paulo, contudo, não foi o suficiente. Em poucos meses meus pais deixaram a cidade para que ela não fosse presa, e foram então para o Rio, sem avisar nenhum parente e sem nunca ter pisado na cidade. Arranjaram trabalho e por dois anos tentaram levar uma vida, digamos, normal. Até que foram descobertos.
Presos, passaram primeiro pela Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Conta meu pai: "lá ninguém foi interrogado. Apenas nos deixaram separados um do outro, nus, encapuzados, sem comida, sem água, sem banheiro, sem nada. Isso por 24 horas. Nos enfiaram então numa C-14, a temível Veraneio usada pela polícia política, e nos trouxeram para São Paulo, para a Oban, onde ficamos dez dias presos". (A Operação Bandeirante, conhecida como Oban, foi a estrutura montada pelo exército em São Paulo para interrogar e torturar presos políticos).
Àquela altura o POC não existia mais fazia algum tempo. Todos já tinham sumido ou estavam presos. Processada pela Justiça militar, minha mãe foi julgada à revelia e absolvida, não pesava nada muito grave contra ela. Mas a sentença favorável de nada valeu. Durante o período na Oban, meu pai perguntou a um dos interrogadores por que ela estava lá, se já havia sido absolvida pelo regime. Ele riu e respondeu: "Porque ela ainda não tinha vindo aqui".
De novo deixo que meu pai conte como foi: "Em dez dias na Oban a sua mãe passou por duas sessões de tortura, choques nas mãos, fios amarrados nos dedos, nua". E prossegue: "nesses dez dias em que ficamos lá, eu também era interrogado diariamente, mas enquanto ela tinha que falar sobre o POC e seus militantes, eu era questionado sobre abobrinhas diversas. 'Conhece fulano?', 'Onde você estava em tal época?'. A maioria das perguntas era sobre política estudantil que eu tinha feito aos 16 e 17 anos, no colegial, em Catanduva. Era só pra encher o saco mesmo. Não me deram choque; só tapas, socos e uns pontapés. O pior era a ameaça diária, que felizmente não cumpriram, de torturar a sua mãe na minha frente, já que ela tinha que responder sobre o POC. Mas os caras sabiam tudo, muita gente da organização já havia sido presa e interrogada. E então, cada vez que a resposta dela não batia exatamente com o que eles sabiam, vinha mais choque, só por sadismo. Dez dias depois abriram o portão da rua Tutóia e nos mandaram embora. Isso foi um ano antes de você nascer, em janeiro de 1973."
Em 1979 minha mãe morreu por motivos não relacionados ao que sofreu na ditadura, e então meu pai voltou a São Paulo, comigo e meu irmão. Eu tinha cinco anos, e a partir daí passei minha infância e a adolescência ouvindo relatos emocionados do meu pai sobre aqueles tempos.
Mas ouvi também passagens bonitas. Como quando foram levados por um conhecido à residência de um artista famoso que ajudou dezenas de militantes que viviam na clandestinidade no Rio. Era o Chico Buarque, que recebeu meu pai em casa assim que eles chegaram na cidade e, sem perguntar nada, assinou como fiador o contrato de aluguel do primeiro apartamento em que eles moraram por lá. Meu pai nunca mais o viu, e nunca teve a chance de agradecer – obrigado, Chico.
Ninguém relembra essas histórias terríveis para despertar pena ou ganhar tapinha nas costas. Quero apenas que tanto sofrimento não tenha sido em vão.
Cada um dos responsáveis pelo sofrimento de minha mãe, de meu pai e de todos os demais presos, mortos ou torturados, têm de ser punido. Todos. Seja o general ou um carcereiro que ouvia tudo e nada fez. Mais: meu filho e os outros de sua geração precisam ler nos livros de história o que, de fato, aconteceu. Disso não abro mão. Disso o Brasil não deveria abrir mão.
*Lino Bocchini é editor de midia online de CartaCapital. Seu relato faz parte da série de 50 depoimentos coletados para o especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964
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