50 anos do golpe
Ato no antigo DOI-Codi tem hino da 'Internacional' e manifesto-oração
por Marsílea Gombata — publicado 31/03/2014 17:47, última modificação 01/04/2014 09:19
Evento reuniu ex-militantes, familiares, ativistas e advogados
Chico Buarque e Geraldo Vandré em looping. Cartazes de militantes desaparecidos. Ex-integrantes da luta armada. Advogados de presos políticos. No pátio do que hoje é considerado um dos maiores centros de tortura da história do País - o DOI-Codi de São Paulo - cerca de 600 pessoas se reuniram para lembrar os 50 anos do golpe de 1964 em um ato que contou com apresentações de teatro, música e uma espécie de "oração coletiva", na qual os presentes lembraram em voz alta os 56 nomes daqueles que ali morreram. O clímax ficou por conta da Internacional em alto e bom som, cuja imagem ficou marcada por lágrimas e punhos em riste embalados pelo coro que acompanhava o hino.
Abraçado a colegas de militância, o ex-preso político Ivan Seixas vibrava: "Aqui dentro! Está tocando a Internacional aqui dentro!"
Ao seu lado, Adriano Diogo, atual presidente da Comissão do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", tentava conter as lágrimas. "Isso aqui hoje é a Queda da Bastilha. Não tem palavras que expliquem o que aconteceu aqui. Talvez só uma coisa tão sensível quanto a ficção e a arte consigam fazê-lo. Foi algo de outro mundo."
Entre uma apresentação e outra, o deputado estadual pelo PT subiu ao palco com Seixas e a ex-militante do PCdoB Maria Amélia Teles. Acompanhados pelos presentes, leram um manifesto que pedia a punição de torturadores que ali atuaram (como Carlos Alberto Brilhante Ustra e Waldir Coelho), a transformação do local em um memorial, a abertura de todos os arquivos da época e desmilitarização da polícia. O tom do coro era de manifesto e oração.
"Quero que a se apure a verdade para que isso nunca mais volte a acontecer, para que ninguém seja trazido para cá", disse o jornalista Antonio Carlos Fon, que passou ali 17 dias detido sob tortura em 1969. "A gente morre um pouco a cada lembrança do que os militares fizeram neste País, a cada visita a este local."
Um dos responsáveis pelo grupo de trabalho Justiça de Transição do Ministério Público Federal, o procurador da República Marlon Alberto Weichert classificou o ato como uma "vitória consolidada". "Os familiares e vítimas estão invadindo o que era um centro de tortura. É um marco histórico", afirmou. "Em 2008, quando começamos a trabalhar a questão da justiça de transição, isso era um assunto proibido. Hoje, seis anos depois, muitos apoiam a punição aos torturadores. Há uma outra consciência, não apenas jurídica, mas também política e social."
Para Lúcia Paiva Mesquita Barros, irmã do deputado federal Rubens Paiva, morto em 1971, a esperança é que "o passado não se repita". "Quero que pouco a pouco se faça justiça. E justiça é refazer o nome dele", afirmou ela, entre lágrimas e com um cartaz com a foto do irmão.
"História enterrada". Para o deputado Ivan Valente (PSOL-SP), o marco dos 50 anos do golpe mostra que o País continua enterrando a sua história. "Cinquenta anos e o Brasil ainda não consegue virar essa página. Sem a revisão da Lei de Anistia não conseguiremos virar essa página. Não por revanche, mas os militares ainda não conseguem fazer a autocrítica e pedir perdão público. Precisamos abrir os arquivos militares."
O antigo DOI-Codi funcionava onde hoje é o 36º Distrito Policial. Ali existe um depósito e uma garagem da Polícia Civil. O complexo é composto de um pátio, antiga entrada dos presos, na Rua Thomas Carvalhal, onde há uma estrutura nova, e outros dois prédios com entrada pelo número 921 da Tutóia – um praticamente abandonado e um outro reformado onde funciona o DP. Neste, onde antigamente ficavam as celas femininas, foi feita uma reforma para o Departamento de Polícia Judiciária da Capital, da 2ª Delegacia Seccional da Polícia.
Logo em frente, a estrutura que abrigava as salas de interrogatório e de tortura ainda é mantida nos padrões da época, mas completamente vazia. Nos três andares do prédio, vultos e gritos são ouvidos com frequência, contam funcionários do DP.
Em uma passagem relâmpago, de menos de 15 minutos, o prefeito Fernando Haddad se disse a favor de transformar o local em memorial da luta contra a ditadura. "Tudo o que puder ser feito para manter viva a memória dos tempos sombrios que vivemos é útil e educativo para a sociedade. Não podemos esquecer o que é não poder se expressar ou não ter o direito de se manifestar."
Ao lado do pai, o líder ecumênico metodista Anivaldo Padilha, o ex-ministro da Saúde e pré-candidato ao governo de São Paulo Alexandre Padilha contou que voltar ao local o faz lembrar de como aprendeu cedo o que era a ditadura. "Muito cedo tive de aprender por que eu e minha mãe mudávamos de casa e não tínhamos residência fixa até meus 3 anos de idade, porque só falava com meu pai por carta ou por fita cassete e só fui conhecê-lo quando eu tinha 8 anos."
A sigla DOI-Codi indica o nome do órgão Destacamento de Operações de Informação (DOI) do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi), coordenador da repressão política durante a ditadura. O centro é fruto da Oban (Operação Bandeirante), primeira referência da institucionalização da tortura na ditadura que gerou o DOI e exportou uma espécie de tecnologia repressora para outras cidades, como o Rio. "Voltar para esse lugar onde tantos morreram, foram torturados, e mulheres violentadas sexualmente, é dizer: 'Estamos vivos e continuamos a lutar por um Brasil melhor'", afirmou a advogada Rosa Cardoso, integrante da Comissão Nacional da Verdade, ao lembrar que a Oban selou a tática de "esterilização política".
Presa e submetida a choques elétricos no corpo, a ex-integrante da ALN (Ação Libertadora Nacional) Darci Miyaki contou que, apesar das duras memórias, saía do ato otimista. "É a quinta vez que volto aqui. Cada vez é terrível. Mas hoje foi um misto de alegria e sofrimento. Além de lembrar nosso passado, em um local que não pensava em voltar, ver jovens, partidos, sindicatos e estudantes conosco é uma visão que me enche de esperança."
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