Carta Verde
Matheus Pichonelli
Ativismo virtual
17.11.2011 12:04
O protesto dos ‘globais’ acertou o alvo
Nas eleições de 2006, trabalhava num jornal diário que tinha uma seção, no caderno de política, para artistas e outras personalidades dizerem em quem pretendiam votar naquele ano e o porquê. A ideia era contatar, geralmente por telefone, o maior número de celebridades possível para fazer um convite inglório: falar, ainda que num espaço curto, sobre política, e tudo o que envolve o assunto – em última instância, o que se esperava do País para os próximos quatro anos. Foi um parto. Conseguir declaração de famosos, sobretudo atores globais, era pedir para ouvir o gancho se estatelar na cara do outro lado da linha. A maioria respondia que não tinha o menor interesse em se manifestar.
A atriz Maite Proença estrela vídeo que pede paralização das obras em Belo Monte
Não estava claro, para mim, se a retração era autocensura ou política da empresa, mas, a certa altura, comecei a me perguntar onde os famosos esconderam a coragem que, dezessete anos antes, os levou a dar as caras na primeira eleição presidencial após a redemocratização para cantar o “Lula Lá” na tevê, numa das mais acirradas campanhas políticas que o Brasil testemunhou.
Está certo que, de lá pra cá, muita coisa mudou – muitas delas para pior – sobretudo após sequências de frustrações de quem esperava muito ou nada de Fernando Collor de Mello e dos governos que se seguiram. Nesse período, a manifestação de artistas ficou tão rara que, quando acontecia, soava patética. Basta lembrar o papel interpretado por Regina Eu Tenho Medo do Lula Duarte nas eleições de 2002.
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Mas alguma coisa aconteceu entre o início dos anos 2000 e as manifestações mais recentes de movimentos organizados. Com a explosão da internet, muitos começam a sair do armário, usando as redes eletrônicas como front de batalha. José de Abreu, de um lado, Carlos Vereza, do outro, e Fernando Meirelles, no meio, foram alguns dos que deram as caras, independentemente dos papeis que interpretavam (ou comandavam), nas telas direcionadas ao grande público nas eleições presidenciais de 2010.
Trecho do rio Xingu (foto), onde está sendo construída a usina de Belo Monte. Foto: NYT
Num tempo em que empresas, inclusive de comunicação, instauram como política interna a proibição das livres manifestações nos sites de relacionamento, como o Twitter, um grupo de atores, entre eles Maitê Proença, Cissa Guimarães e Marcos Palmeira, decidiu dar as caras desta vez em um vídeo que se alastrou pela internet com um apelo: parem as obras de Belo Monte, a futura hidrelétrica do Pará que tem custo estimado em cerca de 30 bilhões de reais e previsão para começar a funcionar normalmente em 2019.
Menos de 24 horas depois da primeira postagem, as reações se multiplicaram em proporção geométrica – para alegria dos idealizadores do movimento, intitulado “Gota d’Água”. É como se os rostinhos bonitos da tevê, de quem tantos (inclusive da imprensa) querem saber com quem saem, quanto ganham e o que fazem na cama, emprestassem a influência e interlocução com um público imenso para dar seu pitaco num debate até então restrito às partes interessadas, como a população local, o governo, os ambientalistas e os desenvolvimentistas.
No vídeo, os atores afirmam: a obra é cara demais para funcionar durante apenas quatro meses do ano (nos outros, a região seca); o desmatamento previsto é de 640 quilômetros quadrados; falar em energia limpa só faz sentido se a hidrelétrica fosse instalada no deserto; há outras prioridades orçamentárias e outras formas de se gerar eletricidade, como por meio da energia eólica ou solar; os índios vão deixar suas casas e serão levados para as periferias da cidade, eternizando o circulo da miséria; se esta for obra equivocada, será um caminho sem volta. No fim, pedem que o internauta assine uma petição online num endereço eletrônico com perguntas e respostas sobre a obra. Dá tempo ainda para Maitê Proença ameaça tirar o sutiã e para Ary Fontoura fazer um desnecessário apelo à presidenta Dilma Rousseff, maior entusiasta do projeto, para que ela pense no futuro que seus netos terão quando o meio ambiente for para o espaço.
Em cinco minutos, o desfile de argumentos – mais criativos e eficientes do que as correntes de frases-feitas que poluem qualquer rabisco de debate – produz efeito e atinge um público aparentemente alheio até então. Mal e mal, o debate está feito, com um vigor que não se viu na tevê e na internet nem mesmo quando índios do Xingu e os engenheiros se reuniam, no Pará, para debater a questão. Depois do vídeo, muita gente ficou com vontade de saber mais sobre o empreendimento.
Mesmo assim, os críticos do vídeo foram a público dizer que a discussão é malfeita, hipócrita, fora de hora e os argumentos, frutos de encenação. Como se, em vez de dizer “eu matei o mocinho”, o ator resolvesse encenar o personagem ambientalmente responsável e só. Disseram ainda: esses atores globais não têm nada com a conversa, e talvez a única atriz que tenha chegado perto de Belo Monte entre todos eles seja a paraense Dira Paes. Pode ser. Mas ao aceitar gravar o vídeo, e dar a cara para bater, os atores já tomaram uma posição – o que não deixa de ser uma evolução e tanto para quem até ontem fugia de debates com medo de ser repreendido pelo público ou pelo empregador.
Por tudo o que envolve, a começar pelo impacto ambiental e à vida em seu entorno, a usina de Belo Monte é um dos mais delicados temas em discussão hoje no País. A questão é tão complexa que gerou uma crise entre o governo brasileiro e a OEA (Organização dos Estados Americanos), que pediu a suspensão das obras e irritou Dilma Rousseff. E, obviamente, as causas e consquências do projeto não se esgotam num vídeo de cinco minutos.
Índio da região do Zingu protesta em Brasília contra construção de hidrelétrica. Foto: Agência Brasil
Uma coisa parece certa: com a atual capacidade energética nacional, e o ritmo de crescimento necessário para se desenvolver, o Brasil uma hora vai travar. A superação do gargalo energético é, portanto, condição de existência – inclusive para quem precisa do computador para manifestar seu ativismo.
Só que, neste caso, existem boas razões dos dois lados – basta ouvir os argumentos de quem defende o empreendimento, como o economista Antonio Delfim Netto e o físico Luiz Pinguelli Rosa, além, é claro, do governo federal.
Acontece que os opositores da obra tomaram a dianteira, e viram na internet uma oportunidade para dialogar com o público de fato – recentemente Fernando Meirelles anunciou um projeto semelhante, armado de vídeo e argumentos, numa espécie de trollagem sobre senadores que analisam o Novo Código Florestal, outro tema espinhoso.
No fim das contas, os atores globais, agora chamados de oportunistas, deixaram sua contribuição para que, a partir de agora, gente que jamais se interessou por questões ambientais (ou se interessou superficialmente) tente saber, por exemplo, por que as intervenções estatais na Amazônica, com o ciclo da borracha, a Zona Franca de Manaus, o projeto Tucuruí, as mineradoras, a Transamazônica, a BR-319 e o início dos projetos das usinas de Santo Antonio e Jirau não contribuíram até hoje para eliminar de vez a situação de miséria à qual a população da região está submetida há décadas. Ausência de Estado ou abuso estatal? É uma questão.
Noves fora, quem não gostou do vídeo e tiver argumentos em favor de todas essas obras, seja ator ou especialista, têm o mesmo caminho, o mesmo acesso, a mesma rede e a mesma possibilidade de rebater e dar sequencia ao debate. E, se for o caso, desmontar um a um os argumentos do vídeo que acaba de ganhar o mundo virtual. Quem é contra a obra já se mobilizou. E acaba de acertar o alvo em cheio.
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