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Por Flávio Aguiar - de São Paulo
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Mais uma vez a direita e a extrema esquerda dão-se as mãos. Desta vez é para aplaudir as vaias contra Lula no Maracanã. Na imprensa oligárquica comemora-se e denuncia-se: quem falar que houve orquestração nas vaias é idiota. Voltam as teses de preconceitos vários: é a classe média contra o Bolsa Família, é o Sudeste/Sul contra o Norte/Nordeste, e por aí vai. Voltam os velhos clichês: o Rio é mesmo “irreverente”, etc.
O Estadão eletrônico pelo menos registrou que houve divisão no estádio: uma parte vaiou, outra parte aplaudiu, quando os aplausos foram puxados a partir da tribuna de honra. Ou seja, houve reação às vaias. É claro que a importância da notícia fica com as vaias, mas pelo menos houve, nesse caso, o registro da não-unanimidade. Porque o que a direita e a esquerda da esquerda comemoram é que “O Maracanã vaiou Lula”, “O Rio vaiou Lula”.
De minha parte, não conheço na história, numa circunstância dessas, nem vaia nem aplauso que não parta de uma orquestração. A puxada dos aplausos partiu da tribuna; quem terá puxado as vaias? DEMs distribuídos? Os incansáveis PSTUs e PSÓIS compactados? Tudo junto? É mais provável. Mas vá-se saber ao certo. O que é certo é que em estádio, vaia e aplauso pegam mais do que riso em teatro e cinema.
Pegou novamente pela direita e pela extrema esquerda a campanha implícita (não é preciso conspiração clássica para tanto, venho insistindo nisso) de que é necessário, absolutamente necessário “parar o governo Lula”. Com suas ainda que por vezes timoratas iniciativas populares, o governo Lula moveu o nosso Leviatã (o paquidérmico Estado brasileiro) alguns graus a bombordo, isto é, à esquerda em relação à sua proa. Isso é insuportável tanto para a direita quanto para a extrema esquerda. Para a direita porque lhe provoca pânico (de perder privilégios e rendas) e asco (de ver o povão feliz). Para a esquerda da esquerda porque lhe rouba público potencial.
De quebra, como demonstra o artigo de Bernardo Kucinski (o segundo da série sobre os bancos), Lula, seja por vocação, esperteza, intuição ou vontade explícita (ou tudo junto incluído), produziu o milagre de por no nosso Coliseu político, pela primeira vez desde Vargas, algo que pode se transformar num projeto hegemônico e nacional para a sociedade brasileira, quiçá para a América
No plano externo, o governo Lula dá oportunidade à estratégia da diplomacia à esquerda dos “barbudinhos”, como se chamou historicamente a então nova geração de diplomatas formados depois que Azeredo da Silveira assumiu o Itamarati no governo Geisel. Essa oportunidade deu espaço a um passo histórico, fazendo que o Brasil assumisse uma posição de liderança na negação da Alca, na afirmação do Mercosul, na luta contra a desigualdade do comércio mundial, puxando até a Índia e a África do Sul, além da Argentina e quem sabe um dia o México, para essa frente.
Ocorre que tudo isso é insuportável para a nossa burguesia e seus “protegés” que guardam o espírito oligárquico. Esse setor da sociedade brasileira desenvolve urticárias, erisipela, furúnculos, herpes, cada vez que ouve falar em “América Latina”, em “projeto nacional”, e coisas assim. Foi-se o tempo, por exemplo, em que parcela da burguesia quatrocentona (para dar um exemplo) de S. Paulo se orgulhava de ter na família “uma avó caçada a laço” (a expressão corrente era essa mesma), apontando sangue índio nas veias, para se distinguir dos imigrantes recém chegados, sobretudo os italianos.
Agora essas e outras famílias dessa classe (nem todas, vamos assinalar) e também de outras partes do país se orgulham é de ter filhos estudando nos Estados Unidos e na Europa; ao mesmo tempo em que adoram elogiar o transporte público nas cidades do “primeiro mundo”, querem mesmo é ter espaço para seus carrões. Se fizessem um plebiscito nessa classe em S. Paulo, garanto que ganharia a abolição do rodízio de carros e dos corredores exclusivos de ônibus e táxis, embora isso, como se provou dramaticamente no começo deste julho, levasse a cidade ao completo caos.
Historicamente predominou nessa burguesia e em seus arautos na imprensa a hegemonia da não hegemonia, isto é, a felicidade privilegiada de administrar, no território pátrio, a hegemonia alheia, através da integração subordinada ao comércio mundial. Para essa parcela, numericamente não desprezível da população, ainda que esmagadoramente minoritária, se tivesse consciência histórica, a época áurea do Brasil estaria na República Velha, quando a oligarquia de então, depois de se ver livre do imperador e da maldita princesa que lhe tirou os escravos remanescentes sem pagar indenização, e de neutralizar os positivistas mais exaltados, conseguiu estabelecer o reino do “seu” liberalismo, aquele em que as liberdades constitucionais valem mesmo para os bem nascidos ou os bem acolhidos em seu universo de favores.
Esse universo, caracterizado pela ineficiência de nossa carta constitucional, qualquer que ela seja, além de criar ao longo da história as mazelas que ora vemos explodir no Congresso Nacional (mas que a imprensa oligárquica agora aponta como um “mal de Lula”), cai como luva para a retórica dos extremos da esquerda, cujo objetivo momentâneo, já que “não estão dadas as condições históricas para o grande salto”, é a conquista de adeptos. A opção do governo Lula “rouba” espaço a essa retórica, e hostiliza o imobilismo que ela contém, sempre preocupada mais em demonstrar que a razão sempre lhe pertence, do que em fazer avançar a situação, as condições de vida e a consciência dos próprios direitos por parte dos de baixo.
Não resta dúvida de que, mesmo com suas titubeações e inconsistências por vezes irritantes, o governo de Lula é o fato mais perigoso para a estabilidade desse quadro histórico brasileiro (desde Vargas, volto a citar) hoje ainda caro à oligarquia dominante e interessante para que a retórica de esquerda possa medrar. Por isso cabe mesmo orquestrar vaias contra o presidente, dentro dos estádios e nas páginas e telas eletrônicas.
Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior - 16/7/2007 22:50:40
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