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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

31.7.07

O MASSACRE - ELDORADO DOS CARAJÁS: UMA HISTÓRIA DE IMPUNIDADE

LIVRO

Eleuda de Carvalho da Redação
30/07/2007 03:13

O escritor Eric Nepomuceno acaba de lançar O Massacre - Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade (Planeta). No livro-reportagem, que tem fotos de Sebastião Salgado, ele investiga a morte de 19 agricultores no Pará, há 11 anos, à luz de uma reflexão sobre as questões da terra no Brasil
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O livro-reportagem
O Massacre - Eldorado dos Carajás
tem fotos de Sebastião Salgado

O surdo correndo, braços abertos, tomou uma chuva de balas, foi ao chão. Seria o primeiro. Um a um foram caindo, eram 19 corpos destroçados no começo da manhã do dia 17 de abril de 1996. Dos centenares de agricultores que viraram a noite na curva do S, na estrada próxima à fazenda Macaxeira, em Eldorado dos Carajás, Pará, os que escaparam carregam as marcas do horror. "Rubenita Justiniano da Silva, no dia do massacre, tinha 26 anos. Levou um tiro na boca, teve a mandíbula fraturada, a língua rasgada, perdeu seis dentes, e a bala ficou para sempre alojada em sua garganta... Com a frequência das rotinas cruéis, sem aviso, o pescoço desanda a latejar, o local ferido inflama, os olhos ficam avermelhados, a visão enevoada".

Nenhum dos implicados na desastrada operação policial, mesmo condenados - como o coronel Pantoja (sentenciado a 228 anos de cadeia), está preso. Seria mais um capítulo sangrento das questões ligadas à terra no Brasil, mais uma história para ser esquecida.

O escritor Eric Nepomuceno não se resignou. Por três anos, percorreu os meandros do conflito - dos antecedentes do século 16 ao processo judicial que condenou o coronel. E ouviu, de perto, quem ainda sofre na carne o resultado do confronto desigual.

O Massacre - Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade acaba de sair pela editora Planeta. O registro fotográfico é de Sebastião Salgado.

"Tudo o que aquela gente queria era ser ouvida pelas autoridades", escreve Eric Nepomuceno, sobre os sem-terra de Eldorado de Carajás, no seu livro indignado no qual ele faz a conexão entre capitanias hereditárias, o sistema de sesmarias do século 16 (que, não se espante o leitor, ainda traz pretensos herdeiros de imensidões de terras ao século 21), e os continuados conflitos agrários espalhados por todo o país. Apenas na região Norte, os dados oficiais sobre trabalho escravo são de estarrecer. Mas não dão conta da extensão desta tragédia denunciada (e, como sempre, impune). Eric lembra o seringalista Chico Mendes, a missionária Dorothy Stang, outros homens e mulheres ainda vivos, mas marcados para morrer.

"O que se vê pelo interior do Pará são imensos cemitérios a céu aberto", atestou no seu livro, onde também registrou o desmatamento sem limite, a destruição da floresta mas também a esperança e a firme dignidade que ele viu nos sobreviventes ao massacre de Eldorado de Carajás. Eles conquistaram o direito ao Assentamento 17 de Abril. A preço muito caro.

O POVO - Você passou três anos elaborando o livro. Mas, como começou tudo? A partir de que momento você resolveu encontrar os muitos fios desta história?

Eric Nepomuceno - Tudo começou com um telefonema de Nilo Batista, meu amigo, um dos maiores advogados criminalistas do país. Ele me sugeriu escrever sobre o julgamento dos policiais militares que haviam participado da chacina. Expliquei a ele que não tinha a menor vontade de voltar a escrever literatura de não-ficção, ou seja, reportagens, ensaios, essas coisas. Estava dedicado aos meus contos e às traduções de livros de meus amigos. Mas comecei a dar voltas ao assunto, e me interessei. Fui conversar com advogados que haviam atuado no caso, e aí mergulhei fundo, não parei mais. Tudo isso aconteceu no começo de 2004, terminei a última revisão em junho de 2007. Foi um trabalho exaustivo, desgastante, mas que espero tenha valido a pena. A idéia foi escrever um livro que possa ao menos tentar ajudar a impedir que essa história brutal caia no esquecimento.

OP - O que o marcou mais em sua viagem a Eldorado, ao Norte? Como foi encontrar, cara a cara, este pedaço do Brasil?

Nepomuceno - Da mesma forma que a imensa maioria dos brasileiros do sul, eu pouco ou quase nada conhecia do norte. Nunca havia estado no Pará, por exemplo. Foi uma descoberta e tanto. É difícil dizer o que mais me marcou, já que foram tantas as marcas. Mas eu mencionaria duas coisas. Primeiro, a desolação da paisagem naquela área que percorri. Pastos imensos, salpicados por troncos queimados. A castanheira é de madeira nobre, morre de pé. Aquela vastidão desolada impressiona. E segunda e definitiva imagem que me marcou: os olhos das pessoas com quem conversei. Nos assentamentos, nas ocupações de terras, há um olhar de orgulho, de dignidade, de esperança, uma luz que a gente não vê por aí... Os meios de comunicação, na época do massacre e depois, quando do primeiro julgamento, fizeram coberturas bastante corretas e, em alguns casos específicos, muito boas. Depois, o tema foi caindo no limbo da memória. Entendi que deixar que o esquecimento encubra essa história seria matar duas vezes as mesmas pessoas, mutilar de novo os sobreviventes, e contribuir para que tudo continue como está.

OP - Em um trecho do livro você escreve: "A marca da impunidade é evidente". Lembrei de Os Sertões, o "livro vingador" de Euclides da Cunha e seu espanto - que fez com que não esquecêssemos aquela história. Olhando as imagens do Sebastião Salgado, até parece que vemos os rostos das mulheres e dos poucos homens que sobraram do massacre de Canudos... Impunidade que vem de muito tempo, não?

Nepomuceno - Muito, muito tempo sim - e não vejo em horizonte algum a possibilidade de que isso termine. O que entendo cada vez mais é que nosso país vive a mesma estrutura de poder, vive debaixo do mesmo sistema em que uma engrenagem leva a outra, para que tudo permaneça tal como está. E para isso, a impunidade é essencial.

OP - E bulir com esta gente grande, em dinheiro, terras e poder. Você sofreu algum tipo de coação, enquanto esteve lá, pesquisando, entrevistando para o livro?

Nepomuceno - Absolutamente nenhum tipo de coação, nenhuma ameaça, pressão alguma. Agora, não sei como será.

OP - O agronegócio destrói a floresta numa velocidade de míssil. Os assentamentos, devagarinho. A Floresta Amazônica, entre grileiros, mega-empresas e pequenos agricultores - estaria condenada?

Nepomuceno - Não creio que seja exatamente assim. Os grileiros devastam, as mega-empresas também, a política agrícola baseada na agro-indústria ainda mais. Não vi, porém, assentamentos destruindo a floresta. Ao contrário: os que vi já foram instalados em áreas devastadas antes. Veja bem: me refiro ao que constatei. No resto do Pará, ou no resto do Brasil, não sei. Mas até onde pude ver, não senti que a linha mestra seja a devastação. Nem tenho notícia concreta de que isso ocorra com os assentamentos no resto do país. Pode até ser que aconteça, mas não senti que seja essa a política dos que reivindicam terras no Brasil.

OP - E a questão indígena, em meio a isto tudo?

Nepomuceno - Meu tema foi o massacre de Eldorado dos Carajás. Não me propus, nem poderia, a tratar do tema da terra no país inteiro... Mas acho sua pergunta muito pertinente. Espero que alguém se dedique a esse assunto, que é urgente, claro.

OP - Qual a diferença entre os sesmeiros do século 16 e os donos atuais de imensos hectares? Os Mutran, a Vale do Rio Doce, os antigos donos da fazenda Macaxeira (onde ocorreu o massacre)?

Nepomuceno - Não há nenhum nome que eu mencione no livro como exemplo isolado, como um responsável único. O que pretendi foi contar histórias que, no meu ponto de vista, e que aliás é o mesmo das pessoas daquela região, simbolizem um mecanismo muito mais amplo. Tudo que o livro conta está fartamente documentado, mas não se trata de dizer que fulano ou que tal empresa tem a responsabilidade exclusiva. Não: todos são responsáveis, somos todos responsáveis. Uns pela ação, outros por omissão, o sistema pela sua permanência, sua sobrevivência.

OP - "Todo mundo sabe. E tudo continua na mesma", escreve você. Ao se deparar com todos estes dados que você investigou, e ao fim do trabalho - surge um desânimo, uma descrença? Este governo de Lula, tão sonhado, não vem conseguindo avançar em relação às questões do campo. Qual sua opinião?

Nepomuceno - Não penso que seja uma questão deste ou de qualquer outro governo. Enquanto não houver vontade política, determinação real, de se encarar a questão da terra a sério no Brasil, nada vai mudar. Tenho, é verdade, uma certa descrença, que não vem de hoje nem se deve ao atual governo. Às vezes bate, sim, um certo desânimo. Mas aí recordo a lição que recebi de um grande amigo meu que se foi, o Darcy Ribeiro. Ele dizia, com toda clareza, que na América Latina só podemos ser duas coisas: resignados ou indignados. E eu não vou me resignar nunca.

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O Massacre - Eldorado dos Carajás: uma história de impunidade - Romance reportagem do jornalista e escritor paulistano Eric Nepomuceno com fotografias de Sebastião Salgado. Lançamento Editora Planeta. 216 páginas, R$ 32,50

Quem é o autor - O escritor e jornalista Eric Nepomuceno nasceu em São Paulo, em 1948, mas criou-se e vive no Rio de Janeiro. "Só morei em São Paulo anos mais tarde, de 1964 a 1973", conta ele, por e-mail. Entre 73 e 83, viveu na Argentina, México e Espanha. Em 86, resolve se dedicar apenas à literatura, embora colabore para o jornal espanhol El País e o Página 12, da Argentina. "Publico contos desde 1977, livros de não-ficção (reportagens, ensaios, biografias) desde 78. Tenho livros sobre Cuba, Nicarágua, Zapata, Hemingway na Espanha. Tenho contos em antologias de meia dúzia de países. Traduzi Eduardo Galeano, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, Juan Gelman, Antonio Skármeta, Gabriel García Márquez - a lista é grande, foram 50 livros. Agora, estou fazendo a nova tradução (a primeira não é minha) de Cem Anos de Solidão. Ah, sim: escrevi o texto de introdução do livro Trabalhadores, do Sebastião Salgado, e o texto do documentário Vinícius, do Miguel Faria Jr". Nepomuceno é autor dos livros A garota do trombone, Coisas do mundo, Quarta-feira, As palavras andantes, O livro da Guerra Grande (em parceria)e organizou Somos todos culpados: pequeno livro de frases e pensamentos de Darcy Ribeiro.

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Cancion con todos

Salgo a caminar
Por la cintura cosmica del sur
Piso en la region
Mas vegetal del viento y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de america en mi piel
Y anda en mi sangre un rio
Que libera en mi voz su caudal.

Sol de alto peru
Rostro bolivia estaño y soledad
Un verde brasil
Besa mi chile cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña america y total
Pura raiz de un grito
Destinado a crecer y a estallar.

Todas las voces todas
Todas las manos todas
Toda la sangre puede
Ser cancion en el viento
Canta conmigo canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz