Nós,  movimentos sociais do campo e da cidade, entidades, organizações e pessoas que  há mais de 10 anos lutamos contra os desertos verdes em território capixaba e  nacional, estamos muitíssimo preocupado/a/s com as tentativas de arranjos  políticos e negociações de gabinete em torno da política quilombola em nível  federal, estadual e municipal, com diversas forças agindo no sentido contrário  ao reconhecimento e regularização do território  quilombola.
Já faz  algum tempo que se observa a guinada, inclusive de militantes da esquerda  partidária brasileira, na defesa dos interesses do capital. Agora temos em  terras capixabas mais um exemplo flagrante da reorientação política praticada em  nível nacional, com grande repercussão, e que têm desapontado boa parte da  aguerrida militância popular. Trata-se da situação das comunidades quilombolas  do Território Sapê do Norte, localizado no norte do Estado Espírito Santo  (especialmente nos Municípios de São Mateus e Conceição da Barra). As condições  em que vivem essas comunidades refletem bem o atual estágio das parceiras entre  o poder público e os interesses latifundiários e agroindustriais na região,  protagonizadas por lideranças sindicais e partidárias que hoje ocupam cargos em  instituições federais, estaduais e municipais.
No Sapê do  Norte, coberto por eucaliptais e canaviais, as 38 comunidades quilombolas que  resistem ilhadas entre estas monoculturas, vêm buscando recuperar suas terras  que foram tomadas pelas grandes empresas, como é o caso da Aracruz Celulose S/A,  que invadiu este território desde a década de 1970 e provocou sérios impactos  ambientais, sociais, econômicos e culturais na região, conforme denunciado  diversas vezes e por diversos meios e espaços pela Rede Alerta Contra o Deserto  Verde, como por exemplo, a denúncia que fizemos à Corte Interamericana da OEA,  através dos dois Relatórios de Violação de Direitos Econômicos, Sociais,  Culturais e Ambientais.
Depois de  dois séculos de escravidão dos afro-descendentes, o reconhecimento dos direitos  quilombolas na constituição brasileira de 1988 tem gerado tensões, violência e  racismo proveniente dos setores conservadores do campo que, no Espírito Santo,  se articulam no famigerado Movimento Paz no Campo (MPC). Aliando-se aos  interesses do latifúndio monocultor, dos ruralistas e das grandes corporações, o  MPC tem buscado formas de minar a implementação da lei, através, sobretudo de  lobbies nos poderes legislativos, executivos e judiciários, notadamente sobre os  órgãos públicos responsáveis pelas políticas e direitos territoriais das  comunidades quilombolas.
Esta luta  pela restituição do território quilombola, portanto, encontra um cipoal de  dificuldades. No âmbito estadual, os órgãos públicos que deveriam avaliar e  regular a posse de terras, promover e fomentar a produção agrícola familiar  diversificada, bem como cuidar da preservação ambiental, de um lado, fazem  vistas grossas aos desmandos dos grileiros das terras devolutas e à devastação  da mata atlântica e dos mananciais hídricos que ainda restam na região. De outro  lado, colocam toda a estrutura de pesquisa e extensão rural a serviço da  monocultura de eucalipto e financiam sua expansão a partir de programas de  fomento florestal.
Mas, não é  só isso. Após décadas de ocupação irregular do território quilombola pela  monocultura do eucalipto e da cana de açúcar, as comunidades negras do Sapê do  Norte têm sido fragmentadas em pequenos terrenos, ilhadas pelo deserto verde,  cujas famílias, uma vez isoladas em meio ao eucaliptal, resistem a toda sorte de  abusos e violência.
Denúncias  em audiência pública promovida pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos  (realizada em 2008 no Município de São Mateus), que contou com a presença de  várias autoridades dos Três Poderes da República, demonstraram que essa  violência tem sido praticada por pessoas contratadas por grileiros, mas, também,  por policiais estaduais, que inclusive invadem as casas das famílias quilombolas  sem qualquer mandado judicial, provocando intimidações e  ameaças.
O Poder  Judiciário e o Ministério Público, com raríssimas exceções de alguns de seus  membros, recebem essas denúncias com total parcialidade. Muitas vezes chegam a  exagerar no rigor e até na injustiça, quando se trata de punir negros acusados  (muitas vezes sem qualquer prova) de roubo de madeira pelos grileiros. Contudo,  essas mesmas instituições jamais cuidaram de investigar a fundo as atrocidades  praticadas pelos latifundiários e por policiais sobre as comunidades  quilombolas. Enquanto isso, as famílias negras são humilhadas e discriminadas  inclusive pelo racismo, mesmo quando várias denúncias são promovidas em  audiências públicas com a que ocorreu em 2008.
As  Administrações Municipais e as Câmaras de Vereadores também são coniventes com  essa situação. Mas não é para menos. Seus membros invariavelmente têm suas  campanhas eleitorais financiadas pelos proprietários da monocultura. Prefeituras  e Câmaras Municipais mantêm em seus quadros pessoas declaradamente vinculadas  aos movimentos políticos dos latifundiários e de pequenos proprietários  cooptados pelo falso eldorado dos programas de fomento florestal da Aracruz  Celulose e do governo estadual.
Um caso  particular que ilustra bem a situação política da região ocorre no Município de  São Mateus. Ali, o último pleito eleitoral resultou na Vitória de Amadeu Boroto  (do PSB) como prefeito municipal. O secretariado de Boroto reúne desde o  conservadorismo dos fazendeiros do Movimento Paz no Campo (MPC) até membros da  chamada esquerda de São Mateus, cuja maior expressão tem sido a do seu chefe de  gabinete, Silvio Manoel dos Santos. 
Neste  contexto da luta emancipadora das comunidades quilombolas, nitidamente isoladas  politicamente, o governo federal procura cumprir o seu papel conciliador dos  conflitos, sem alterar o status quo,  como fica nítido pelos últimos acontecimentos.
Os  governantes agem por parâmetros políticos bem nítidos. É bom lembrar que o  governo federal tem como termômetro o apoio político recebido pela Aracruz  Celulose e pelos fazendeiros do MPC, tanto do governo estadual e das prefeituras  municipais, como da grande maioria parlamentar no Congresso, na Assembléia  Legislativa e nas Câmaras Municipais envolvidas. Não se pode esquecer, também,  que a Aracruz Celulose sempre lembra aos políticos que tiveram suas campanhas  eleitorais por ela financiadas, dos acordos de reciprocidade que garantiram suas  eleições. 
Cabe  destacar o papel desempenhado pelo senador Renato Casa Grande, que parece ter  herdado a missão da defesa latifundiária do ex-senador Gerson Camata, combinando  interesses corporativos com as demandas políticas dos financiadores de suas  campanhas eleitorais. Com isso, tem sido um dos parlamentares mais procurados  pelos representantes do MPC.
E foi  exatamente numa dessas articulações políticas do MPC que foi decidida a  substituição de um técnico do INCRA que tem trabalhado no processo de  reconhecimento do território quilombola no Estado do Espírito Santo. Uma nota  oficial da Associação dos Servidores do INCRA (ASSINCRA-ES) denunciou  recentemente que o superintendente regional deste órgão federal, José Gerônimo  Brumatti (ex-presidente da CUT-ES e pertencente ao grupo político de Silvio  Manoel dos Santos no PT), tem promovido uma reviravolta na política de  reconhecimento dos territórios quilombolas no estado. Diz um trecho da Nota  Pública da ASSINCRA-ES:
"No dia 04  de março, o superintendente do INCRA comunicou ao gestor da Política de  Regularização dos Territórios Quilombolas no ES que este seria substituído, com  a justificativa de que era preciso 'negociar' a política 
Na  seqüência a referida Nota Pública indaga o  inevitável:
Essa  estratégia de negociação com os grandes proprietários do norte do ES e a  substituição do responsável pela Política de Regularização dos Territórios  Quilombolas no estado foram decididas em uma reunião que o próprio  superintendente regional afirmou ter participado, 
Para quem  nomeou como secretário de Agricultura exatamente o Sr. Eliseu Bonomo, membro  fundador do MPC 
Contudo,  alheias a esses movimentos oficiais e simplesmente desconsideradas nesse jogo de  barganhas políticas, as comunidades quilombolas seguem com sua luta pela  libertação de seu território e se colocam ainda mais atentas às próximas jogadas  dos que tentam forjar o sepultamento de seus direitos ancestrais.  
Assim, a  Rede Alerta Contra o Deserto Verde que se constitui, por 10 anos, num coletivo  de lutas e resistências dos povos  atingidos pela perversidade do modelo  econômico monocultor/agroindustrial e concentrador de terras se coloca  solidariamente mais uma vez nessa luta dos povos tradicionais do Sapê do Norte e  vem a público denunciar mais essa armação contra o reconhecimento de seu  território. Reafirmamos nosso compromisso de continuar presente em todas as  mobilizações organizadas pela Comissão Quilombola, na certeza de que a luta pela  libertação definitiva do povo negro em nosso estado não se dobrará a jogadas  rasteiras desses políticos que hoje nos traem.
E  defendemos:
·         A  pronta titulação das terras das comunidades quilombolas do território do Sapê do  Norte e do Espírito Santo;
·         O  Decreto 4887/03 para a regularização dos territórios quilombolas no Brasil;  
·         A  discriminação e arrecadação das terras devolutas na região;  
·         A  reconversão dos monocultivos para agroecologia; a recuperação das nascentes,  rios e córregos; garantindo a soberania alimentar das famílias  quilombolas;
·         A  implementação das políticas públicas para a educação e para a saúde dos povos  tradicionais afro-descendentes quilombolas; 
·         O  direito dos povos a auto-identificação, conforme a Convenção 169 da OIT.   
Vitória, 4 de abril de  2009.
Assinam também esta  nota:
Comissão  Quilombola Sapê do Norte (ES)
Instituto Elimu Professor Cleber Maciel – ES
ANAI - Associação Nacional de Ação Indigenista
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