Entrevista com Glayson Ariel Bencke
26/1/2007
O biólogo Glayson Ariel Bencke afirma: “As monoculturas podem decretar o fim do pampa como uma grande unidade natural e estamos diante de uma oportunidade para evitar que isso aconteça, o que não pôde ser feito com relação às nossas florestas e banhados, pois não havia consciência ecológica e não se falava em desenvolvimento sustentável quando esses ecossistemas foram explorados e degradados até quase sua exaustão”.
Bencke é graduado pela Unisinos e pós-graduado pela UNESP de Rio Claro (SP), em Zoologia. Especialista em aves (ornitólogo), atualmente trabalha como pesquisador do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. É um dos organizadores do Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção no Rio Grande do Sul, Edipucrs, 2003, e consultor da organização internacional de conservação das aves BirdLife International.
A entrevista a seguir foi concedida por e-mail e publicada na edição 190 da IHU On-Line de 7-8-2006.
IHU On-Line - Quais são as conseqüências da implantação de monoculturas em campos sulinos?
Glayson Ariel Bencke – Ao contrário das florestas de pinheiros do planalto, das florestas do Alto Uruguai, da Mata Atlântica em geral e dos banhados, o pampa é a única formação natural do Estado que ainda não sofreu uma redução significativa e ainda não foi totalmente fragmentada, em grande parte graças ao uso tradicional para a pecuária, atividade que não exige a supressão da vegetação natural, mas apenas a altera. As monoculturas podem decretar o fim do pampa como uma grande unidade natural e estamos diante de uma oportunidade para evitar que isso aconteça, o que não pôde ser feito em relação às nossas florestas e banhados, pois não havia consciência ecológica e não se falava em desenvolvimento sustentável quando esses ecossistemas foram explorados e degradados até quase sua exaustão. Ambientalmente, podemos falar em três categorias de impactos da implantação de monoculturas de árvores exóticas no pampa: redução da biodiversidade, redução da disponibilidade de água e salinização do solo. Não precisamos ter uma grande parte do pampa convertido em monoculturas para afetar nossa biodiversidade e nosso ambiente natural. Acontece que a maioria das espécies mais vulneráveis não ocorre em todo o pampa, mas ocupa uma região muito restrita de campos. Assim, se essa região em particular for saturada com plantios, podemos pôr em risco a sobrevivência de toda uma espécie. De forma semelhante, certas regiões têm menos água disponível do que outras, porque chove menos. Nessas regiões, grandes plantações podem reduzir o suprimento de água para os rios e arroios, transformando-os em cursos d´água temporários e causando ou intensificando as estiagens, o que traz graves conseqüências socioeconômicas e ambientais. Por fim, árvores têm raízes mais profundas do que capins e ervas dos campos nativos. Assim, movimentam depósitos de água subterrânea mais profundos, trazendo junto os sais lá acumulados. Isso pode causar a salinização do solo, algo já constatado no pampa argentino.
IHU On-Line - Para licenciar o plantio de árvores exóticas é necessário o zoneamento da área. Nos campos sulinos, isso vem sendo feito? As grandes indústrias concordam com esses zoneamentos? Efetivamente, resolve alguma coisa essa política de zoneamento?
Glayson Ariel Bencke – Sim. A Sema, através de seus órgãos executivos (Fepam, FZB e Defap), vem elaborando um zoneamento específico para orientar o licenciamento e a expansão das atividades de silvicultura no Rio Grande do Sul, visando principalmente a evitar que alguma região específica do Estado fique saturada com monoculturas de árvores exóticas (causando, por exemplo, perda de habitats importantes para espécies ameaçadas da fauna e da flora nativas) ou que haja redução na disponibilidade de água em alguma bacia hidrográfica por causa do excesso de plantios. Em geral, as grandes indústrias do setor concordam com a elaboração do zoneamento, já que não querem criar conflitos com os órgãos ambientais. Talvez as orientações do zoneamento conflitem ou até sejam incompatíveis com os planos que as indústrias têm para algumas regiões específicas do Estado. Por isso, é necessário que as regras do zoneamento sejam amplamente discutidas, para que as situações de maior conflito sejam identificadas e, na medida do possível, resolvidas, sempre tendo em mente o princípio da precaução, ou seja, não se pode expandir os plantios acima de níveis que possam representar um risco para o ambiente ou para a população. O zoneamento só será efetivo se resultar de uma discussão ampla com todos os setores envolvidos (inclusive sociedade, que, muitas vezes, se omite em questões como essa) e se houver interesse político para implementá-lo. O zoneamento não está sendo feito para atrapalhar a vida de ninguém, mas para garantir qualidade de vida à população gaúcha e a preservação do nosso rico patrimônio natural. Cabe também a nós, portanto, vigiar para que esse instrumento de gestão venha a ser bem utilizado.
Desenvolvimento e sustentabilidade
Desenvolvimento pode ser sustentável, sim, mas sempre haverá uma perda ambiental até se atingir o desenvolvimento e a sustentabilidade pretendidas. É praticamente impossível pensar em ocupar e desenvolver toda uma região sem que se perca nenhum dos elementos de sua biodiversidade original, sem que se altere nenhum dos processos ecológicos dos quais ela faz parte, sem que se afete nenhuma de suas relações com regiões vizinhas. Daí entra uma questão fundamental, que é o ordenamento da ocupação do ambiente. Podemos conceber o desenvolvimento sustentável de uma região, com as perdas ambientais associadas, desde que resguardemos parte dela especificamente para a conservação da biodiversidade, onde fauna, flora e ecossistemas possam continuar existindo, evoluindo e mantendo suas relações ecológicas. O problema é que geralmente não estabelecemos limites para nossa expansão, ou seja, não estamos dispostos a abrir mão de áreas que poderiam ser desenvolvidas economicamente em favor da preservação da natureza. Nunca saímos da infância quando falamos em conservação da natureza, pois ainda não definimos bem nossos valores e nossos limites. Precisamos amadurecer como sociedade. Precisamos de “pais” que nos eduquem e nos dêem limites, senão quem nos mostrará o limite que deveríamos ter respeitado serão as catástrofes e privações do futuro.
IHU On-Line - O que vem mudando na paisagem do pampa nos últimos anos? As tradições dos homens que trabalham nos campos sulinos ainda são as mesmas?
Glayson Ariel Bencke – O que mais se vê é a conversão dos campos tradicionalmente usados para a pecuária em áreas de agricultura, o que inclui a recente introdução da silvicultura extensiva no sul do Estado. Essa transformação nos sistemas de produção certamente exige mudanças no perfil do trabalhador do campo, que acabam por desvinculá-lo de suas tradições seculares. As tradições se mantêm pelos usos e atividades tradicionais. Assim, há risco de perdermos parte de nossa identidade como gaúchos. Mas não podemos pensar na figura do gaúcho como algo estático, tipo peça de museu. A cultura e as tradições evoluem junto com as sociedades. O que não pode é mudarmos nossa cultura e nossas tradições pela imposição de interesses econômicos e pela falta de campos no futuro. É preciso garantir que nossa cultura evolua na presença de seu cenário mais típico: os campos de pecuária.
IHU On-Line - O que caracteriza (ambiental e culturalmente) o pampa gaúcho?
Glayson Ariel Bencke – O pampa gaúcho é parte de uma importante região natural com cerca de 760.000 km2, que cobre a metade sul do Rio Grande do Sul, o Uruguai e a região do Prata, na Argentina. O Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro onde o bioma pampa está representado. No pampa, assim como em outras regiões de campos naturais, os ecossistemas são limitados pela disponibilidade de água. Assim, predominam na vegetação espécies da família das gramíneas (capins) e ervas. As florestas, por sua vez, são pouco expressivas, pois precisam de mais chuvas. Toda a fauna e flora dos campos está adaptada para viver em ambientes abertos, sendo intolerantes à sombra, por exemplo. Ninguém consegue imaginar uma ema ou uma perdiz vivendo dentro de uma floresta, não é mesmo? Longe de serem ecossistemas pobres em espécies, os pampas apresentam uma diversidade biológica muito grande e peculiar. A região é uma das áreas do planeta com maior diversidade de gramíneas (capins e afins). São 400 espécies só nos campos do Rio Grande do Sul. Outro dado importante é que 15% das 250 espécies ameaçadas de extinção no Rio Grande do Sul habitam somente campos, sendo seis mamíferos, 25 aves, um réptil, três anfíbios e três espécies de abelhas. Estão incluídos nesta lista o veado-campeiro, o gato-palheiro e águia-cinzenta, entre outros. Também há um número significativo de espécies de animais e plantas que são endêmicas do pampa, ou seja, não existem em nenhum outro lugar do planeta. No Rio Grande do Sul, destacam-se muitas espécies de cactos, de grande valor ornamental, que só existem aqui. Culturalmente, pode-se dizer que há uma identidade entre o povo gaúcho e o pampa, que são indissociáveis, pois nossas tradições estão centradas na figura do gaúcho, habituado às lidas campeiras.
IHU On-Line - Quais as alternativas que os produtores rurais podem buscar, tendo em vista o quadro atual do bioma pampa?
Glayson Ariel Bencke – Eu acredito que a alternativa ambientalmente mais saudável seja investir em uma pecuária forte, visando à produção de carne certificada, ou seja, carne gerada por meio de um sistema de manejo que mantenha as características naturais dos campos nativos e garanta a sobrevivência das espécies características desse ecossistema fantástico. Esse produto tem futuro, pois os mercados consumidores estão exigindo produtos ambientalmente “amigáveis”. Além disso, não é preciso alterar muito a cadeia produtiva já existente para produzir carne certificada e já avançamos muito em tecnologia para isso. A criação de emas consorciada à pecuária tradicional também me parece uma atividade bem promissora. O ecoturismo e o turismo cultural, explorando a paisagem dos nossos campos, as nossas tradições gaúchas e a rica história de batalhas e conquistas que envolvem o pampa é um prato cheio a ser explorado por algumas regiões. O “problema” é que essas soluções não caem prontinhas do céu como empresas de produção de celulose, mas exigem planejamento de longo prazo e investimentos para o futuro, coisa que nossos governantes ainda não estão acostumados a fazer, além de subsídios temporários.
IHU On-Line - Quando as grandes empresas não cumprem o código florestal do Estado elas são punidas? Como é essa relação entre as grandes empresas, governo, código florestal e campos sulinos?
Glayson Ariel Bencke – Prefiro falar em legislação ambiental em vez de apenas código florestal. Grandes empresas, qualquer que seja sua atividade, são punidas, sim, quando descumprem a legislação ambiental. O que acontece, às vezes, é que as empresas preferem arcar com o valor das multas a deixar de realizar uma obra ou atividade que cause impacto ambiental, pois têm um lucro maior com o dano do que sem ele. No entanto, eu tenho a expectativa de que as empresas de celulose que estão se instalando no Rio Grande do Sul irão respeitar o zoneamento, pois ele pode evitar problemas futuros para essas empresas. É preciso lembrar que em outras regiões do mundo onde a silvicultura extensiva foi desenvolvida sobre campos naturais, como na África do Sul, as empresas responsáveis precisam investir volumes de dinheiro da ordem de centenas de milhões de dólares na recuperação do ambiente que degradaram, pois esgotaram fontes de água importantes para a população e eliminaram o habitat de espécies de animais endêmicos e ameaçados. O mesmo poderia facilmente acontecer aqui. Portanto, as empresas também têm a ganhar seguindo regras claras que visem ao bem de todos, pois assim evitam conflitos futuros.