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pergunta:

"Até quando vamos ter que aguentar a apropriação da ideia de 'liberdade de imprensa', de 'liberdade de expressão', pelos proprietários da grande mídia mercantil – os Frias, os Marinhos, os Mesquitas, os Civitas -, que as definem como sua liberdade de dizer o que acham e de designar quem ocupa os espaços escritos, falados e vistos, para reproduzir o mesmo discurso, o pensamento único dos monopólios privados?"

Emir Sader

20.12.17

Natal

Jesus desafiou a ordem política, econômica e religiosa da época. Foi preso, torturado e assassinado como herege, desviado, imoral, escandaloso e desviado. Esse é o Jesus que tantas vezes parte da Igreja tenta esconder. 
Confira a nova coluna do pastor Henrique Vieira.

Vídeo: 
https://www.facebook.com/MidiaNINJA/videos/1040293032795508/
19 de dezembro de 2017



O natal vítima da ideologia

Jacques Távora Alfonsín
18 de dezembro de 2017

Como toda a armadilha, as da ideologia também disfarçam o grampo de captura das suas presas. Para o significado do natal não atrapalhar outros interesses, ela achou um meio de pressionar desejos sobre coisas, presentes, bolas coloridas, brilhos de papel, árvores artificiais cheias de enfeites, toda uma aparência alheia e distante do Menino Jesus, a Pessoa que deu nome ao próprio natal.

Substituí-lo pelo papai Noel, decorar casas e show rooms, enviar apps e cartões de boas festas, comprar nozes, avelãs e vinhos caros para uma ceia de meia-noite, virou obrigação.

A pobreza, a falta de teto e a negação de hospedagem aos Pais da Criança, levando a Sua Mãe quase parindo para um abrigo improvisado, como acontece ainda hoje com muita mãe favelada, isso tem sido habilmente posto de lado da imaginação coletiva. Assim, o verdadeiro sentido desse Nascimento não seja atualizado e consiga perturbar toda uma cultura ideológica criada por um sistema de propaganda e divulgação com poder suficiente para neutralizar a lembrança de quanto se encontra em causa nesse acontecimento histórico.

O pensamento, o sentimento e a ação da Criança, quando chegou a sua fase adulta, curando doentes, condenando poderes privados e públicos corruptos, convivendo com gente de má fama, conforme os valores predominantes na hipocrisia das classes econômica e politicamente dominantes, colocando-se gratuitamente a serviço de gente pobre e miserável, desmitificando falsas posturas religiosas, semeou na história posterior um outro modelo de poder, de vida, de costumes, muito diferentes e infinitamente superiores aos, então, em voga.

Quem despreza, oprime, reprime, escraviza, odeia e mata gente como aquela que vivia em companhia desse Menino, achou uma saída: assassinou-o, sem possibilidade de defesa, numa cruz. Como ainda agora acontece, quando se recorda a sucessão macabra de mártires que seguiram o Seu Exemplo, militantes da causa de libertação dos povos, como Dom Oscar Romero, das/os pobres da terra e dos direitos humanos, como Dorothy Stang, Margarida Alves, Paulo Fonteles, Eugenio Lyra, Rubens Paiva, Ico Lisboa, ateus, atéias, gente presa, torturada, jogada de avião ao alto mar, corpos desaparecidos, as Comissões de anistia e de verdade tentando levar a seus familiares alguma pista de onde possam ser encontrados.

Qual a relação desses testemunhos históricos com o natal? Entre milhares de outras, elas são pessoas que, como o Menino Jesus, independentemente de suas crenças, desejos, sonhos, também não nasceram em vão. São vidas de doação e desapego a serviço de irmãs e irmãos necessitadas/os, generosas e com coragem perseverante até a disposição de morrerem em defesa delas e deles.

Exatamente o contrário da ideologia hoje dominante no natal, muito mais preocupada com o incremento de uma civilização cultural e ideologicamente obcecada pelo ter, o acumular, o egoísmo, a aparência vaidosa do dinheiro, em prejuízo do ser, da consciência da necessidade alheia, inspiradora do Menino. Mais do que ninguém, Ele conhece a diferença entre o dar e o doar-se.

Marx dizia, contra a pseudo ciência e alienação da sua época que era necessário transformar a crítica do "céu" em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito e a crítica da teologia em crítica da política. Se vivesse agora, diante do que estão planejando e fazendo o Papa Francisco e a chamada teologia da libertação, ele não repetiria essa crítica. O preséio está voltando a ser o que é, um abrigo precário e pobre. Está iluminado por outras luzes estrelares, reais e não fictícias, invertendo a inversão da ideologia, parecendo um sinal paradoxal desse fato, o desespero com que essa tenta se defender.

O natal desse ano pode recuperar o seu significado real, o Menino já se levantou e está reproduzindo sua mensagem na voz e na ação de pessoas suas seguidoras, algumas que nem O conhecem direito. Cumpre inverter a inversão ideológica falsificadora desse acontecimento, negando as negações que ela impõe ao modo de uma dialética de pensamento, sentimento e ação ancoradas no significado concreto do nascimento do Menino Jesus. Ateus e crentes talvez possam concordar num ponto chave dessa significação: nascido na mais absoluta carência, sem ter conseguido um lugar onde sequer conseguisse "reclinar a cabeça", a Criança revolucionou as gentes e o mundo. Muito sintomaticamente, se alguma vez usou uma arma para isso, foi um simples relho para expulsar quem fazia da Sua Casa um balcão de negócios…

Na internet circula um texto de Carlos Drumond de Andrade muito oportuno sobre isso. Tomando o natal como tema, ele ironiza o amor pelo dinheiro e a alienação dos poderes instituídos. Ofereço a você, leitor e leitora, que me honraram em 2017, com leitura e crítica sobre o que escrevo. Pelos dois últimos parágrafos da mensagem desse grande poeta, faço minhas as suas palavras, desejando um muito feliz natal e um 2018 bem melhor para vocês. Até breve. Espero estar de volta por aqui no dia 22 de janeiro:

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz. O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível. A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã. O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive. E será Natal para sempre.


Texto de Jacques Távora Alfonsin



Livre de vírus. www.avast.com.

18.12.17

Sete chaves para entender a Argentina

domingo, 17 de dezembro de 2017

Sete chaves para entender a Argentina

Por Martin Granovsky, no site Carta Maior:

Este 14 de dezembro foi um intenso dia de política. Independente de como termine a disputa entre o governo e os aposentados, ninguém pode dizer que entende como o país funciona sem considerar sete chaves:

1) O ímpeto presidencial de jogar duro e aproveitar a força adquirida com a vitória nas eleições legislativas em outubro para produzir a maior quantidade possível de mudanças em favor da agenda conservadora, e o mais rápido possível.

2) A transformação do bloco de deputados da opositora Frente para a Victoria (FpV) num fator político de primeira ordem. Após a decisão de impedir a sessão de alcançar o quórum, o bloco conduzido por Agustín Rossi não deixou o Congresso. Vigiou a sessão. E seus membros em nenhum momento deixaram de falar com legisladores de outros blocos, sobretudo os peronistas que respondem aos governadores.

3) A capacidade mobilizadora do kirchnerismo e da esquerda (e desta vez também das centrais operárias) quando há uma disputa concreta.

4) A disposição do governo em conseguir acordos com os peronismos provinciais e as dificuldades de concretizá-los quando se torna evidente que isso terá altíssimos custos políticos. Em geral, a postura predominante entre os peronistas do interior foi a seguinte: "que os governistas se apresentem, e depois vemos o que acontece".

5) As divisões dentro do governismo. Não há mais de um líder, Mauricio Macri é o cara e seu projeto de um conservadorismo duradouro é consenso, mas há disputas. É preciso saber se essas disputas favorecem a líder da Coalizão Cívica Elisa Carrió, ou se as forças de oposição – com a FpV e uma Frente Renovadora mais combativa já sem o moderado Sergio Massa na cabeça – começam a dar passos firmes, aproveitando as fissuras do macrismo.

6) A resolução de converter as quatro forças armadas e de segurança num martelo único capaz de avassalar as garantias constitucionais, matando mapuches, prendendo jovens por diversão, agredindo deputados e baleando fotógrafos.

7) A heterogeneidade. Mauricio Macri tem um alto nível de consenso. Parte da sociedade, inclusive em setores de classe media e de trabalhadores, sonha com suas promessas de prosperidade individual. Mas o presidente não consegue apagar da memória a política (e a ideologia) do emprego seguro e da aposentadoria sem cortes.

Todos agora estão jogando duro.

O PT felicita o povo de Honduras pela jornada democrática de 26 de novembro e saúda o triunfo eleitoral da chapa Salvador Nasralla – Xiomara Castro, da Aliança de Oposição contra a Ditadura

Resolução do Diretório Nacional: Solidariedade internacional ao povo hondurenho

O PT felicita o povo de Honduras pela jornada democrática de 26 de novembro e saúda o triunfo eleitoral da chapa Salvador Nasralla – Xiomara Castro, da Aliança de Oposição contra a Ditadura
 18/12/2017 12h06

Reunidos nos di de solidariedade internacional ao povo hondurenho:as 15 e 16 de dezembro, os membros do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, aprovaram a seguinte resolução

O Partido dos Trabalhadores felicita o povo de Honduras pela jornada democrática de 26 de novembro e saúda o triunfo eleitoral da chapa Salvador Nasralla – Xiomara Castro, da Aliança de Oposição contra a Ditadura.

Essa vitória consubstancia um forte e amplo movimento de rechaço ao Golpe de 2009 contra o presidente constitucional Manuel Zelaya, golpe esse que perpetrou assassinatos de líderes sociais, indígenas, campesinos, trabalhadores, além da implementação de um profundo programa anti-popular e anti-nacional. Essa tragédia chegou ao fim pois o povo hondurenho se manifestou nas urnas, expressando sua vontade soberana.

Diante dessa situação e considerando a gravidade dos fatos ocorridos em Honduras de manipulação dos resultados eleitorais por parte do Tribunal Superior Eleitoral que, desconhecendo a vontade soberana do povo hondurenho, declarou vitória do candidato oficialista e golpista Juan Orlando Hernandez, o PT conclama todas as forças politicas que expressem sua rejeição dessa decisão do TSE hondurenho.

Pelo respeito à democracia em Honduras e à vontade soberana do povo hondurenho!

São Paulo, 16 de dezembro de 2017.
Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores



17.12.17

A vitória das ignorâncias



MOISÉS MENDES
COLUNISTA

A vitória das ignorâncias

Foto: Reprodução Facebook


13/11/2017

Inventei de dizer na semana passada, em encontro da Feira do Livro sobre O jornalismo e o golpe, que a direita avançava sobre os escombros das ignorâncias que havia produzido. Assim, no plural. Na parte dos debates, fui pego pela palavra por alguns participantes, porque estaria enquadrando o povo como ignorante.

Não chamei e não chamaria ninguém de ignorante. Tentei mostrar, sem nenhuma originalidade, que o golpe, as eleições municipais que resultaram nas escolhas de Doria Júnior em São Paulo e de Marchezan Júnior em Porto Alegre e os avanços dos golpistas (morte da legislação trabalhista e ataques à Previdência, à saúde, à educação etc) não se sustentavam apenas na desinformação superficial e na apatia.

O avanço do golpe é produto da exploração das ignorâncias mais profundas que a própria direita produz. A direita percebeu que o desconhecimento da realidade política contaminou a classe média e que isso ajuda a produzir inércia. A direita descobriu agora o potencial das ignorâncias como nunca havia percebido antes.

Estamos em tempos de ignorâncias. Mas as esquerdas evitam admitir que o povo que elegeu Doria e Marchezan não contava com informação suficiente para saber que nenhum deles era 'novo'. Marchezan é tão velho quanto alguns coronéis do golpe.

As esquerdas acham que, se apontarem para as ignorâncias, estarão depreciando o povo. E o povo, que cada um enxerga onde e como quer, não poderia ser desqualificado. O povo, como ente superior da democracia, não pode ser ofendido.

Marchezan venceu em todas as vilas de Porto Alegre. Todas. Não foi a classe média, sozinha, que assegurou a vitória do tucano. O povo da periferia, com boa parte de ex-lulistas, elegeu Marchezan. Também foi assim em São Paulo e na maioria das capitais.

As esquerdas subestimaram a capacidade da direita de disseminar ignorâncias nas periferias. E agora sofrem diante do que não conseguem reverter. Dizem que o povo teria optado pelos candidatos da antipolítica (que na verdade fazem a política contra o povo) por vários motivos. Pelo antipetismo, pelo cansaço da democracia e basicamente pelo sentimento generalizado de indignação com a corrupção.

Mas todos esses sentimentos misturados não deveriam se sobrepor à capacidade de discernir sobre as escolhas feitas. Um desejo de vingança contra a política dita tradicional não poderia ser maior do que a capacidade de ver que Marchezan e Doria são o que existe de pior da política tradicional.

Mas a política não tem essa racionalidade, e o povo não teve acesso a essas informações. Muita gente não sabia que Marchezan existia, porque Marchezan foi um dos mais medíocres deputados das últimas legislaturas. E as esquerdas não conseguiram alertar o eleitor para isso. Nem que Doria é o falso apolítico. Eles e os outros foram eleitos pelos ressentimentos, pelos desencantos e pelas ignorâncias.

Minha conversa sobre o jornalismo e o golpe aconteceu dias antes da publicação de dois textos que poderiam ter contribuído com minha defesa. Se tivesse acesso aos textos, eu poderia ter juntado mais argumentos para afirmar que estamos quase todos em estado de ignorância, em estágios variados.

Um dos textos, que vi sábado no perfil da professora Esther Grossi, é do sociólogo português Boaventura dos Santos. Boaventura lembrou, em conferência na UFRGS, que "as ideias dominantes têm que ser dominantes também dentro das classes dominadas". Parece óbvio, mas também é assim que a dominação é exercida.

Ele diz mais:  "Em nossas sociedades, as classes dominadas aceitam as ideias dominantes. Aliás, hoje nós vemos isso por todo lado. A perda do social está a permitir exatamente que a hegemonia das classes dominantes seja cada vez maior. É por isso que as vítimas se viram contra as vítimas. Por essa razão é que as vítimas elegem seus próprios opressores".

O outro texto é do professor Francisco Marshall e foi publicado domingo em Zero Hora. Marshall escreve: "No século III d.C., viveu no Império Romano o biógrafo erudito Diógenes Laércio, autor de Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, um ótimo guia para a filosofia antiga. É dessa obra a frase atribuída a Sócrates: só há um bem, o conhecimento, e um mal, a ignorância. Em grego, episteme (ciência, conhecimento elaborado) ou amathia (falta de aprendizado)".

E Marshall conclui: "Há séculos a humanidade enfrenta esse jogo insólito, em que os que apostam na ignorância perdem pelo que são e os que apostam no conhecimento ganham pelo que ainda poderemos ser, melhores e mais felizes".

É o que as esquerdas precisam comprovar, ao lado do povo. Que ainda têm a capacidade de contribuir para a busca da felicidade dos que somente serão felizes se tiverem conhecimento. As esquerdas poderão rearticular forças quando passarem pela avaliação das suas derrotas fora das eleições.

A maior das derrotas é a da informação, da comunicação, da incapacidade de contrapor algo com algum fundamento e algum sentimento ao esforço da direita de produzir ignorâncias.

As esquerdas perderam esse jogo. O povo que elege Marchezan não é apenas um povo ressentido, é um povo manipulado. As ignorâncias premiaram os que as produziram. Não há democracia sob ignorância.

O Brasil amorfo, encaramujado e constrangido é o Brasil que a direita conseguiu ludibriar com as passeatas contra Dilma, com a história das pedaladas, o golpe, a ascensão do Quadrilhão ao poder, com as 'reformas', com a destruição dos serviços públicos e com a caçada a Lula.

Vivemos no país das ignorâncias produzidas todos os dias pelos políticos, pelos empresários, pela imprensa. Com o Judiciário, com o Supremo, com Bolsonaro e com tudo. Vivemos no país dos que, também à esquerda, preferem ignorar as ignorâncias.

http://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2017/11/a-vitoria-das-ignorancias/


A vitória das ignorâncias

MOISÉS MENDES
COLUNISTA

A vitória das ignorâncias

Foto: Reprodução Facebook


13/11/2017

Inventei de dizer na semana passada, em encontro da Feira do Livro sobre O jornalismo e o golpe, que a direita avançava sobre os escombros das ignorâncias que havia produzido. Assim, no plural. Na parte dos debates, fui pego pela palavra por alguns participantes, porque estaria enquadrando o povo como ignorante.

Não chamei e não chamaria ninguém de ignorante. Tentei mostrar, sem nenhuma originalidade, que o golpe, as eleições municipais que resultaram nas escolhas de Doria Júnior em São Paulo e de Marchezan Júnior em Porto Alegre e os avanços dos golpistas (morte da legislação trabalhista e ataques à Previdência, à saúde, à educação etc) não se sustentavam apenas na desinformação superficial e na apatia.

O avanço do golpe é produto da exploração das ignorâncias mais profundas que a própria direita produz. A direita percebeu que o desconhecimento da realidade política contaminou a classe média e que isso ajuda a produzir inércia. A direita descobriu agora o potencial das ignorâncias como nunca havia percebido antes.

Estamos em tempos de ignorâncias. Mas as esquerdas evitam admitir que o povo que elegeu Doria e Marchezan não contava com informação suficiente para saber que nenhum deles era 'novo'. Marchezan é tão velho quanto alguns coronéis do golpe.

As esquerdas acham que, se apontarem para as ignorâncias, estarão depreciando o povo. E o povo, que cada um enxerga onde e como quer, não poderia ser desqualificado. O povo, como ente superior da democracia, não pode ser ofendido.

Marchezan venceu em todas as vilas de Porto Alegre. Todas. Não foi a classe média, sozinha, que assegurou a vitória do tucano. O povo da periferia, com boa parte de ex-lulistas, elegeu Marchezan. Também foi assim em São Paulo e na maioria das capitais.

As esquerdas subestimaram a capacidade da direita de disseminar ignorâncias nas periferias. E agora sofrem diante do que não conseguem reverter. Dizem que o povo teria optado pelos candidatos da antipolítica (que na verdade fazem a política contra o povo) por vários motivos. Pelo antipetismo, pelo cansaço da democracia e basicamente pelo sentimento generalizado de indignação com a corrupção.

Mas todos esses sentimentos misturados não deveriam se sobrepor à capacidade de discernir sobre as escolhas feitas. Um desejo de vingança contra a política dita tradicional não poderia ser maior do que a capacidade de ver que Marchezan e Doria são o que existe de pior da política tradicional.

Mas a política não tem essa racionalidade, e o povo não teve acesso a essas informações. Muita gente não sabia que Marchezan existia, porque Marchezan foi um dos mais medíocres deputados das últimas legislaturas. E as esquerdas não conseguiram alertar o eleitor para isso. Nem que Doria é o falso apolítico. Eles e os outros foram eleitos pelos ressentimentos, pelos desencantos e pelas ignorâncias.

Minha conversa sobre o jornalismo e o golpe aconteceu dias antes da publicação de dois textos que poderiam ter contribuído com minha defesa. Se tivesse acesso aos textos, eu poderia ter juntado mais argumentos para afirmar que estamos quase todos em estado de ignorância, em estágios variados.

Um dos textos, que vi sábado no perfil da professora Esther Grossi, é do sociólogo português Boaventura dos Santos. Boaventura lembrou, em conferência na UFRGS, que "as ideias dominantes têm que ser dominantes também dentro das classes dominadas". Parece óbvio, mas também é assim que a dominação é exercida.

Ele diz mais:  "Em nossas sociedades, as classes dominadas aceitam as ideias dominantes. Aliás, hoje nós vemos isso por todo lado. A perda do social está a permitir exatamente que a hegemonia das classes dominantes seja cada vez maior. É por isso que as vítimas se viram contra as vítimas. Por essa razão é que as vítimas elegem seus próprios opressores".

O outro texto é do professor Francisco Marshall e foi publicado domingo em Zero Hora. Marshall escreve: "No século III d.C., viveu no Império Romano o biógrafo erudito Diógenes Laércio, autor de Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, um ótimo guia para a filosofia antiga. É dessa obra a frase atribuída a Sócrates: só há um bem, o conhecimento, e um mal, a ignorância. Em grego, episteme (ciência, conhecimento elaborado) ou amathia (falta de aprendizado)".

E Marshall conclui: "Há séculos a humanidade enfrenta esse jogo insólito, em que os que apostam na ignorância perdem pelo que são e os que apostam no conhecimento ganham pelo que ainda poderemos ser, melhores e mais felizes".

É o que as esquerdas precisam comprovar, ao lado do povo. Que ainda têm a capacidade de contribuir para a busca da felicidade dos que somente serão felizes se tiverem conhecimento. As esquerdas poderão rearticular forças quando passarem pela avaliação das suas derrotas fora das eleições.

A maior das derrotas é a da informação, da comunicação, da incapacidade de contrapor algo com algum fundamento e algum sentimento ao esforço da direita de produzir ignorâncias.

As esquerdas perderam esse jogo. O povo que elege Marchezan não é apenas um povo ressentido, é um povo manipulado. As ignorâncias premiaram os que as produziram. Não há democracia sob ignorância.

O Brasil amorfo, encaramujado e constrangido é o Brasil que a direita conseguiu ludibriar com as passeatas contra Dilma, com a história das pedaladas, o golpe, a ascensão do Quadrilhão ao poder, com as 'reformas', com a destruição dos serviços públicos e com a caçada a Lula.

Vivemos no país das ignorâncias produzidas todos os dias pelos políticos, pelos empresários, pela imprensa. Com o Judiciário, com o Supremo, com Bolsonaro e com tudo. Vivemos no país dos que, também à esquerda, preferem ignorar as ignorâncias.

http://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2017/11/a-vitoria-das-ignorancias/

MBL, a Disneylândia da direita

POLÊMICA

MBL, a Disneylândia da direita

por Flavio Ilha
    Curador da exposição Queermuseu, Gaudêncio Fidélis, fala na CPIMT dos Maus Tratos, ao lado senador José Medeiros (Pode-MT), relator, e do senador Magno Malta (PR-ES), presidente da CPIMT

    Curador da exposição Queermuseu, Gaudêncio Fidélis, fala na CPIMT dos Maus Tratos, ao lado senador José Medeiros (Pode-MT), relator, e do senador Magno Malta (PR-ES), presidente da CPIMT

    Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

    O ponto fora da curva, que ameaça marcar a derrocada do movimento, parece ter sido a intervenção na exposição Queer Museu – Cartografia da Diferença na Arte, cancelada pelo Santander Cultural depois de uma enxurrada de manifestações de cunho moralista. A mostra, inaugurada em Porto Alegre no dia 15 de agosto, reunia alguns dos artistas brasileiros mais célebres do país, como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Ligia Clark, Leonilson e Alfredo Volpi, em temáticas que exploravam a liberdade sexual

    O curador da mostra, Gaudêncio Fidélis, resume a abordagem policialesca e abusiva do grupo para gerar um fato social. "Não havia critério. Os integrantes do MBL entram no espaço expositivo de câmera em punho e filmaram tudo, crianças, adolescentes, visitantes, até eu em determinado momento virei alvo, assim como os monitores do projeto educativo. Tripudiaram o tempo todo. Os seguranças os arrastavam para fora a cada 5 minutos, mas eles voltavam e aumentavam a carga de enfrentamento verbal e físico para tentar uma reação. Foi uma ação extremamente violenta", relembra.

    O ideário desse grupo é a violência, pura e simplesmente a violência: defendem a revogação do Estatuto do Desarmamento, comemoram assassinatos de supostos bandidos, debocham de políticas de gênero e detestam as feministas, além de se autointitularem machistas. A intervenção nas redes sociais é intensa, seja com o uso de robôs ou mesmo por replicação em páginas com grande número de seguidores – caso do blog Joselito Müller, um perfil fake no Facebook especializado em parodiar figuras públicas da esquerda com notícias falsas. O personagem é uma invenção do advogado Emanuel de Holanda Grilo, que se diz independente na política (chegou a militar no PCR nos anos de 1990, hoje se declara um conservador apolítico) mas acaba servindo de apoio à disseminação de informações inverídicas.

    O professor da USP Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, explica que a disseminação de notícias falsas é a grande arma para a popularização de grupos como o MBL. "Depois da TV, o Facebook é a principal fonte de informação do brasileiro. Como não há uma organização hierárquica das notícias, o leitor simplesmente abre e vai clicando. O papel editorial é feito pelo logaritmo. Então, quem entra no jogo da polarização, das manchetes fortes e com informação não verificada acaba tendo mais compartilhamentos", diz.

    Segundo o professor, não é preciso muito dinheiro para manter um site desses em atividade – o que explica a proliferação de experiências com fake news – seja com milhões ou centenas de seguidores. Todos fazem diferença. "A gente sabe que tem aposentado, estudante, gente comum criando notícia assim. Trata-se de difusão de informação não verificada como instrumento político. O que temos são 'soldados' produzindo informação de combate. E essas notícias são compartilhadas porque elas confirmam posições apaixonadas que o eleitor já tem. Claro, durante um período eleitoral, as regras mudam, existe o trabalho pago. Mas, em período não eleitoral, acho que não é significativo, o que piora o quadro", afirma.

    Militantes do MBL gaúcho protegidos pela polícia diante do Santander Cultural, em agosto

    Militantes do MBL gaúcho protegidos pela polícia diante do Santander Cultural, em agosto

    Foto: Ricardo Stricher

    Marketing do moralismo caça-likes

    A pauta moralista do MBL, entretanto, nem sempre foi predominante. "A grande massa da população brasileira é conservadora, somos um país muito punitivo, com muitos problemas de classe, de racismo. O MBL começou suas ações, lá em 2013, em uma linha muito neoliberal, então o discurso era do Estado mínimo, do neoliberalismo de gabinete. Mas isso não cola no Brasil, as pessoas não querem isso. Então o MBL mudou a estratégia e passou para uma pauta moralista, que tem muito mais eco. Você sempre vai encontrar setores muito grandes da sociedade que te apoiam quando o foco passa a ser a sexualidade, porque são pautas que ainda têm questões transversais de racismo e classismo que são complicadas de vencer", observa a cientista política Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

    Muitos desses ativistas criticam até mesmo as alas mais moderadas do MBL – Rafinha BK e Felipe Diehl, por exemplo, se dizem independentes do Movimento, embora "prestem serviços" a seus integrantes, como ao youtuber Arthur Do Val. Na manifestação contrária à censura da exposição Queer Museu, em setembro, tanto Rafinha quanto Felipe lideraram as agressões aos manifestantes, se prestando também ao papel de "escudo" dos militantes mais ideológicos e refinados.

    Rafinha BK é um trabalhador braçal. Começou sua militância a partir de 2013 e descobriu que podia angariar adeptos a seu canal no Youtube com vídeos toscos sobre as jornadas de junho. Sem obter muita repercussão, começou suas intervenções com gravações simples de celular e obteve uma câmera semiprofissional apenas em 2017 depois que foi auxiliado numa vaquinha eletrônica por um site armamentista. Foi em 2016, porém, que o ativista ganhou notoriedade ao adotar a mesma tática de Do Val, que inclui provocações e baderna.

    Em junho deste ano, Márcio Cannibal e Rafinha BK protagonizaram diversas agressões contra servidores municipais que se manifestavam em frente ao Paço Municipal contra o parcelamento nos salários. Cannibal usou um bastão retrátil, uma arma considerada ilegal, e desferiu golpes contra o professor Geovani Ramos Machado. Embora adepto das teorias do Estado mínimo, Cannibal tentou sem sucesso uma carreira pública ao prestar concurso – e ser desclassificado – para agente de combate a endemias na prefeitura de Porto Alegre, em 2008.

    Lojinha de produtos non sense

    Para quem não conhece, a loja virtual do MBL é recheada de produtos "vintage" – tem até uma camiseta com o que o designer chamou de "três gerações de um sonho", vinculando o vereador paulistano Fernando Holiday (DEM-SP) à luta antirracismo de Martin Luther King. Não é a única aberração: há mais de uma versão de T-shirt com a expressão "Eu derrotei o PT" e outras peças com Kim Kataguiri e Arthur Do Val, do canal Mamãe Falei.

    Esse é o tripé mais conhecido do MBL, mas a máquina do movimento tem entranhas bem mais obscuras que essa face pública e comportada. No Rio Grande do Sul, ativistas como Rafael Silva Oliveira, o Rafinha BK ou Rafinha Black, Felipe Diehl, Adriano Costa e Márcio Gonçalves "Cannibal" Strzalkowski formam a linha de frente do MBL violento e militarista.

    Integrante explícito do MBL, o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP) defende o grupo e se diz "vítima" da agressividade da esquerda. "Estou acostumado a sofrer ataques de representantes e seguidores da esquerda, assim como o MBL também está. Durante muito tempo essas pessoas que hoje nos atacam foram tidas como autoridades que não poderiam ser confrontadas, mas agora que a população conseguiu identificar que esse discurso é uma falácia a agressividade passou a única ferramenta capaz de convencer a militância dos partidos comunistas a seguirem narrativas fantasiosas como a de que houve um golpe no país", diz.

    http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2017/12/mbl-a-disneylandia-da-direita/

    Os juízes diante de Lula

    MOISÉS MENDES
    COLUNISTA

    Os juízes diante de Lula

       

      Barroso e Mendes acusam-se mutuamente de parcialidade: os ministros não acreditam na seriedade e na honestidade de seus pares. Nós devemos acreditar?

      Barroso e Mendes acusam-se mutuamente de parcialidade: os ministros não acreditam na seriedade e na honestidade de seus pares. Nós devemos acreditar?

      Foto: Lula Marques/ Agência PT

      É delicada a situação dos juízes que vão decidir o futuro de Lula no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Três juízes podem reafirmar ou não a sentença imposta por Sergio Moro e determinar se o ex-presidente irá sobreviver e disputar a eleição do ano que vem, ou se estará condenado a antecipar o fim da sua história política.

      É uma situação incomum. Há quem diga, na tentativa de desconstrução da excepcionalidade, que juízes tomam decisões técnicas e imparciais. Uma argumentação como esta, produzida pelas frases gongóricas de um Alexandre de Moraes, pode impressionar. Mas só impressionar.

      Em tese, juízes estão no topo da pirâmide da sabedoria de quem tem a responsabilidade de dizer o que, de acordo com as leis, é certo ou errado. Até Moraes faz parte desta pirâmide.

      Mas um político mente, um jornalista engana, um engenheiro faz cálculos deliberadamente falhos, um professor defende escolas sem partido e prega o fascismo. Um juiz não deveria fazer nada disso. Em tese.

      Um juiz, por mais complexa que seja a questão em exame, deveria ter sua deliberação recebida como a manifestação de um sábio, pelo acúmulo de estudo, de cultura livresca, de vivências e de referências de vida. Mas não é assim em lugar algum. No Brasil, é cada vez menos assim.

      Se fosse assim, se a tecnicidade, o distanciamento e a imparcialidade determinassem mesmo as sentenças do Judiciário (e eu não vou citar nenhum grego ou autor moderno da Wikipédia sobre esses princípios e conceitos), a Justiça brasileira não estaria em dívida com pobres, negros e índios. E o Supremo não seria o que é, uma Corte de decisões esdrúxulas, como a que favoreceu Aécio Neves ao transferir a corruptos do Senado (em confuso voto de minerva) a prerrogativa de salvar um colega ameaçado de processo.

      Decisões do Judiciário, aqui, na Alemanha, na Síria, no Japão, na França e no Iraque são determinadas também pelas influências do momento e das pressões do entorno. E no Brasil as decisões recentes são, invariavelmente, favoráveis a setores bem identificados da direita impune.

      Interpretar leis, estabelecer conexões entre elas e deliberar, solitariamente ou em grupos, é tarefa de homens. Se não fosse assim, programas de computador decidiriam o futuro de Lula. Se a Justiça não fosse uma instituição imperfeita, réus condenados por Sergio Moro não teriam suas penas muito reduzidas ou muito aumentadas pelo Tribunal Regional.

      O juiz de primeira instância e os juízes de instâncias superiores sabem fazer contas. Mas decidem, a seu modo, como chegar a esses cálculos. Uma sentença é a verdade de cada juiz. E o Brasil se constrange ao saber que a verdade do seu Judiciário não está apenas nessas previsíveis minúcias e imperfeições de uma deliberação, que pode ou não ser corrigida por uma instância superior.

      No Brasil, a verdade de Gilmar Mendes não é a verdade de Luis Roberto Barroso, e não porque eles discordem de questões pontuais. Eles não divergem por subjetividades ou abstrações. Discordam no essencial. Os dois acusam-se publicamente de parcialidade. Não por terem cometido erros. Mas por serem, segundo eles mesmos, cúmplices de criminosos.

      Mendes disse no plenário do Supremo que Barroso favorece a soltura de bandidos amigos. No contragolpe, Barroso acusou Mendes de orientar decisões pelos interesses de seus correligionários políticos sob suspeita de corrupção. Os ministros não acreditam na seriedade e na honestidade de seus pares. Nós devemos acreditar?

      Não é jogo de palavras ou duelo de vaidades. É a exposição das entranhas do alto judiciário, das suas partes podres, da impunidade de seus membros, da incapacidade minha, sua e nossa de interferir nessas lambanças, para que em algum momento algo possa ser feito. Nada pode ser feito. Ministros do Supremo são intocáveis, são perenes, porque protegidos pelo mais perfeito corporativismo institucional.

      É neste contexto que Lula será julgado em segunda instância e, mais tarde, terá o caso do tríplex e de outros processos contra ele entregues a esse Supremo desqualificado por seus próprios membros. Por isso é dura a situação dos juízes do Tribunal Regional.

      Se revisarem a condenação de Moro e absolverem Lula, serão marcados pela direita. Passarão a ser os magistrados que puseram a perder toda a caçada que a Lava Jato fez para pegar o mais importante réu político da história do Judiciário brasileiro. Se reafirmarem a condenação, serão transformados em alvos da esquerda e em especial do PT.

      É um problema dos juízes, que em situação 'normal' enfrentariam reações semelhantes. Mas sem a mesma exacerbação de posições, num ambiente em que o Judiciário e o Ministério Público policialescos da Lava Jato foram depreciados pelos que deveriam preservá-los.

      Nenhuma decisão é mais política no momento do que a que envolve o processo de Lula. Ninguém conseguirá protegê-la na redoma do Judiciário. Não interessa se os juízes que irão determinar o futuro de Lula são os mais corretos e dedicados magistrados da Justiça Federal.

      Interessa que eles não podem ser apartados do contexto. E o contexto é de degradação do Judiciário brasileiro, desde o começo da caçada a Lula e Dilma e em meio à assustadora expansão do fascismo e da censura, muitas vezes com o aval da Justiça.

      http://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2017/11/os-juizes-diante-de-lula/


      O nosso vizinho fascista

      MOISÉS MENDES
      COLUNISTA

      O nosso vizinho fascista

        "Como aconteceu na Paris ocupada, ninguém está a salvo da violência e do ódio que podem se manifestar a qualquer momento, nem mesmo os que se consideram aliados do golpe e do fascismo"

        Foto: João Primo / Wikipedia

        O artista francês Christian Boltanski não tem a memória de vivências próprias da França tomada pelos nazistas de 1940 a 1944, porque nasceu ao final da ocupação. Mas sabe, pela memória emprestada que guardou dos relatos dos pais, que um vizinho cordial poderia, de um dia para o outro, virar o algoz de judeus e aliar-se aos invasores.

        O canal Curta mostrou esses dias uma entrevista com o pintor, fotógrafo e escultor Boltanski. Ele falou com calma do tempo do horror em Paris. A história que contou parece banal. Em 1942, os nazistas decidiram que os judeus não poderiam ter animais domésticos em casa. A mãe e o pai, que era judeu, tinham um gato.

        Um dia o gato mijou na casa de um vizinho. O homem exigiu: ou matavam o gato ou a família seria denunciada. Mataram o gato. O incomodado entregaria os vizinhos para se livrar de um gato e ainda ficaria bem com os nazistas.

        Mas o maior segredo dos Boltanski sobreviveria até o final da ocupação: o pai simulou que viajara, quando os alemães invadiram a cidade, e permaneceu escondido no porão da casa até 1944.

        Boltanski fala de uma época que nós, longe no tempo e em distância real, não sabemos avaliar direito. O nazismo contagiou os franceses. O colaboracionismo com os invasores é uma das chagas da alma de Paris.

        Vizinhos aparentemente inofensivos aliam-se aos algozes quando o mal é acionado pelo medo, por algum interesse imediato ou pela vontade de aderir a quem está no poder. Até porque a sensação na época era de que os nazistas haviam se adonado da França para sempre.

        Em outra entrevista recente, outro artista brasileiro, por acaso com os mesmos talentos múltiplos de Boltanski, falou dos seus temores depois do golpe. Nuno Ramos, também pintor, escultor, desenhista e escritor, disse em entrevista a Fabio Prikladnicki, de Zero Hora, que não tem medo dos políticos que apoiaram e sustentam o golpe.

        O que mais o atemoriza é o gesto imprevisível de quem pode até estar ao seu lado. Nuno disse: "A repressão fascista passa muito pelos indivíduos. Tenho mais medo disso do que da corrupção política. Não tenho tanto medo de deputado corrupto. Tenho medo do demônio que possa nascer no meu vizinho, em um amigo que não vejo há muito tempo ou em um primo que diga: artista é tudo vagabundo".

        Eu tenho pelo menos meia dúzia de amigos que sentem algo semelhante. Um deles costuma me alertar com recados pelo messenger: cuidado, eles são perigosos.

        Eles quem? Os que se consideram porta-vozes do golpe nas empresas, nas famílias, na vizinhança mesmo, como aconteceu em Paris. Porque o fascista em potencial está certo de que as instituições foram aparelhadas pelo golpe e ele deve tirar proveito disso.

        Trabalhar pela perenidade da direita no poder pode ser, em apenas alguns passos, aproximar-se do fascismo com todas as desculpas possíveis. É só argumentar que atuam pela moralidade, pela família, pelo país, pela segurança e pelo anticomunismo. O fascista é um homem (ou uma mulher) de bem armado de certezas que o isentam de culpas.

        Sempre foi assim. Esta semana, a Volks emitiu um comunicado em que admite que funcionários (ou diretores?) da filial brasileira colaboravam com a ditadura ao dedurar outros funcionários da própria Volks como subversivos. Se os delatores pudessem ser bem identificados hoje, alguns sobreviventes daquela época talvez dissessem, espantados: eram pessoas cordiais, educadas e até delicadas.

        Cidadãos aparentemente sensatos podem cercar inimigos em aeroportos, como fizeram com a filósofa Judith Butler em Congonhas, ou perseguir uma estudante transgênero em uma escola, como aconteceu em Fortaleza, ou matar negros e gays, ou atacar crianças negras pela internet. Mas essas são ameaças visíveis.

        Há articulações ainda invisíveis, como alertam meus amigos que têm medo. O golpe avança nesses redutos do indivíduo comum, do vizinho de Nuno Ramos, do nosso conhecido fascista, porque eles se consideram colaboradores de um estado de exceção que se anuncia como duradouro. Golpes transmitem a sensação de eternidade.

        Em agosto de 2013, a Globo confessou que o jornal O Globo (a TV Globo ainda não existia) apoiou 'editorialmente' o golpe de 1964. Mas não admitiu, 48 anos e cinco meses depois do começo da ditadura, que colaborou com os militares.

        Talvez nunca um empresário brasileiro ou alguém da imprensa confesse um dia, como fez a Volks, que era informante ou colaborador efetivo do regime que perseguiu, torturou, matou e escondeu cadáveres? Quem, daqui a alguns anos, irá se apresentar como colaboracionista do golpe de agosto do ano passado?

        O que Christian Boltanski nos disse na entrevista sobre o nazismo é que ninguém está a salvo. Todos, inclusive os que se consideram protegidos pelos usurpadores do poder, podem ser alcançados por um dedo-duro apenas eventual, por um oportunista ou pelo militante violento de direita que foi ideologicamente tomado pelo ódio fascista.

        O delator do século 21 não tem as tarefas que eram atribuídas aos canalhas da Volks, que abasteciam a repressão de informações sobre quem deveria ser perseguido. Hoje, quase todo mundo sabe o que a maioria pensa e o que faz das suas opções políticas.

        Não é do delator que devemos ter medo, mas do fascista muitas vezes avulso e dissimulado, que talvez nem tenha se manifestado integralmente, e que se sente autorizado a agir a qualquer momento.

        Esse fascista, que se considera protegido pelo golpe e pela estrutura institucional que o apoia, inclusive no Judiciário, pode estar esperando 2018 para agir em matilhas ainda mais organizadas. Paris é aqui. Estamos sob ocupação.

        http://www.extraclasse.org.br/exclusivoweb/2017/12/o-nosso-vizinho-fascista/





        Cancion con todos

        Salgo a caminar
        Por la cintura cosmica del sur
        Piso en la region
        Mas vegetal del viento y de la luz
        Siento al caminar
        Toda la piel de america en mi piel
        Y anda en mi sangre un rio
        Que libera en mi voz su caudal.

        Sol de alto peru
        Rostro bolivia estaño y soledad
        Un verde brasil
        Besa mi chile cobre y mineral
        Subo desde el sur
        Hacia la entraña america y total
        Pura raiz de un grito
        Destinado a crecer y a estallar.

        Todas las voces todas
        Todas las manos todas
        Toda la sangre puede
        Ser cancion en el viento
        Canta conmigo canta
        Hermano americano
        Libera tu esperanza
        Con un grito en la voz