Por Selvino Heck - Adital - de Brasília
Todos nós em algum momento, na virada de ano, no aniversário, na passagem de uma década para outra, prometemos fazer isso ou aquilo, mudar nossa vida, superar os defeitos, fazer exercícios físicos, ler, beber menos, perder uns quilinhos, correr menos no trânsito, doar-se mais à família e à comunidade, ser mais gente, ser mais solícito e carinhoso.
Mas não é fácil mudar. É preciso disposição, vontade, coragem. Mudar significa enfrentar medos, significa superar o desânimo, significa não se deixar intimidar, significa desacomodar-se. Os vícios já instalados, os condicionantes do dia a dia, a falta de compromisso com a decisão já tomada acabam nos acomodando à rotina, ao fazer o mesmo todos os dias, a repetir os mesmos gestos, os mesmos erros, a ter as mesmas manias.
Não é muito diferente quando falamos de estruturas, sistemas, sociedades. Com certeza é muito mais difícil e problemático. Estes dias um grande jornal do Rio Grande do Sul publicou a seguinte nota no seu Informe Especial, referindo-se aos acontecimentos da Bolívia: "DOIS É DEMAIS. Pode ser definida brevemente a autonomia de Santa Cruz na América do Sul. Ou seja, corremos o risco de ter dois Evo Morales."
Esta nota revela várias coisas. De um lado, o preconceito em relação a Evo Morales, um indígena, lutador social há décadas, presidente eleito soberana e democraticamente pelo povo boliviano. De outro, é o medo da mudança. Quem está estabelecido e tem privilégios teme perdê-los. Tem medo do diferente, do novo.
A mudança está em curso na América do Sul. Não se sabe bem onde vai dar. Os países são diferentes, assim como as culturas, a história e as lutas de cada povo. Não se sabe ainda se vai ser, como diz Rafael Correa, presidente do Equador, uma mudança de época ou apenas uma época de mudança. Mas é certo que os governantes não são mais os mesmos, não têm mais a tradicional origem de sempre, não têm os mesmos compromissos que outros historicamente tiveram.
Parecia que o neoliberalismo tinha cristalizado a história, como alguém profetizou. Ou que o continente sul-americano jamais sairia de uma espécie de ‘stop and go’: longas ditaduras entremeadas de pequenos períodos democráticos. Não se pode esquecer, por exemplo, o Brasil, onde de 1930 para cá só quatro presidentes eleitos diretamente terminaram seu mandato. O resto, ou foi ditadura, ou houve suicídio, golpe e impeachment.
Por isso, o estranhamento com a nota do jornal sobre a Bolívia e Evo Morades. Além de desrespeitar a vontade soberana de um povo, que é pobre, mas tem história de organização e luta social, mostra como é difícil fazer a mudança na América do Sul. Não basta agir segundo as regras do jogo, participar de eleições, conquistar a maioria, instalar o governo sonhado há décadas pelos índios bolivianos, que são ampla maioria em seu país e pela primeira vez conseguem ver sua voz ouvida e respeitada.
Os ventos da mudança têm sempre um ar inesperado. Não se sabe bem quando e onde irão soprar. Mas certamente só acontecerão quando pelo menos duas coisas acontecerem ou se revelarem: um regime ou modelo econômico-social-cultural esgotado, não deixando alternativas e esperança para o povo; e a existência de uma vontade nacional de mudança. As ditaduras bolivianas, os golpes de Estado, a pobreza renitente, a exclusão secular dos mais pobres criaram o caldo histórico para que a vontade nacional de mudança pudesse prevalecer na Bolívia e em outros países sul-americanos. Mesmo assim, os dominantes nunca se resignam, não querem perder parte de seu poder ou riqueza, muitas vezes adquirida sob meios escusos ou sem um mínimo de justiça social.
Assim, como na vida pessoal, é preciso confiar na possibilidade da mudança, acreditar. E jamais deixar-se levar pelo medo, muito menos pelo preconceito. Imagina se os negros escravos não tivessem fugido de seus donos e criado as comunidades quilombolas, e depois resistido aos brancos que queriam voltar a dominá-los! E mesmo quando ainda escravos mantinham formas de resistência, na música, na comida, nos ritos religiosos. Imagina se os índios, tendo sofrido um verdadeiro genocídio, não tivessem resistido, não continuem resistindo como na Raposa Serra do Sol! E assim hoje se possa dizer, para nosso orgulho e felicidade, que ainda existem como povos, inclusive se recompondo em termos numéricos.
Mudar é sempre difícil. No caso da América do Sul, com certeza esta é a melhor oportunidade histórica, que não pode ser desperdiçada. Por isso, o debate político-ideológico sobre os rumos da mudança é sempre necessário, defendendo sua originalidade, sua capacidade inovadora. É preciso envolver a população na mudança, fazendo-a massiva e ampla. É preciso um permanente trabalho de conscientização sobre os conteúdos da mudança política, econômica, social e cultural, para que seja compreendida e a assumida por todos de forma consciente e organizada.
Os poderosos do mundo nunca se curvam aos pobres e deserdados por vontade própria. Os pobres só chegam ao poder quando muito organizados e com consciência clara do que querem para o futuro. Este é o trabalho a ser feito por quem quer e acredita na mudança.
Selvino Heck é assessor Especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política
Nenhum comentário:
Postar um comentário