Ser latino-americano compreende viver sobressaltado ante as incansáveis estratégias urdidas por forças políticas que têm como único objetivo a promoção do retrocesso. Nossas elites, baseadas em um trotskismo às avessas, se empenham em estratégias que podem ser definidas como "involução permanente”. Uma procedimento recorrente em toda a América Latina que, com o apoio ostensivo das corporações midiáticas locais, visa à desestabilização de governos emergentes do campo democrático-popular.
Nesse sentido, o crescente conflito entre o agronegócio e o governo de Cristina Kirchner é algo que, ultrapassando o território de origem, incide diretamente na agenda do governo Lula. Um breve retrospecto se faz imperativo para recordar dois pontos que, com distinções de origem, convergem para um encontro que não pode ser perdido de vista: a origem do dois governos e a trajetória de seus líderes.
Um nasceu há 63 anos em Garanhuns, cidade incrustada no agreste pernambucano. Quatro décadas após uma viagem de pau-de-arara rumo a São Paulo, chegou à Presidência da República. Inequívoca inflexão ética de um eleitorado secularmente conservador, sua vitória foi festejada como o fato político mais importante da história recente da América Latina. Um ex-retirante, forjado no embate político-sindical, líder do mais importante partido de esquerda do subcontinente, sobrepujava os preconceitos da elite e os receios de parcela expressiva da classe média. A esperança teria, enfim, vencido o medo. Com 61,2% dos votos válidos. Em 2006, apesar da maciça artilharia da mídia conservadora, se reelegeu com 60,83% dos votos contra 39,17% de seu oponente tucano.
O outro, 59 anos, veio de Santa Cruz, província argentina rica em petróleo e gás natural. Advogado, desde jovem filiado à ala revolucionária do Partido Justicialista, foi governador de sua terra natal por duas vezes. No dia 25 de maio de 2002, com 46% dos 37 milhões de argentinos vivendo em estado de pobreza, chegou à Casa Rosada em meio à maior crise política, econômica e social dos últimos 100 anos. Ao contrário do primeiro, não foi tão festejado nem despertou tanta expectativa de mudança efetiva. Foi empossado com 22% dos votos, depois da desistência do ex-presidente Carlos Menem.
Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Carlos Kirchner têm em comum o período em que chegaram ao poder e a herança deixada por ditaduras e políticas neoliberais dos antecessores. O governo petista recebeu uma dívida interna equivalente a 62% do PIB, inflação na casa de 25,3% e uma economia à beira da ruptura financeira. Tais indicadores já haviam levado, ainda na campanha, o candidato Lula a assinar a ''Carta ao Povo Brasileiro'', em que eram mantidas as metas básicas dos acordos firmados pela equipe econômica de FHC com o FMI. A política de manutenção dos superávits foi aprovada simultaneamente ao programa de governo pela direção nacional do PT.
Kirchner se deparou com uma economia tomada pela informalidade, taxa de desemprego superior a 20%, dívida pública superior a US$ 146 bilhões e avançado estágio de sucateamento de um parque industrial cuja pujança remontava ao início do século XX.
Ao não quitar débitos estimados em US$ 14 bilhões com o Fundo, Buenos Aires recebeu elogios da conservadora revista The Economist. Obteve, ainda, apoio internacional à proposta de pagamento da dívida privada com deságio significativo. O resultado foi um crescimento em ritmo asiático superior a 8% em quatro anos consecutivos, que somado ao reajuste de 50% do salário mínimo, congelado desde 1993, e à política de programas sociais negociados com o movimento sindical, tirou a Argentina do limbo. Em 2007, conseguiu eleger sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner, com 44,8% dos votos.
Não há dúvidas que ainda faltam correções para pavimentar o caminho do crescimento sustentável, tanto aqui como na Argentina, mas a correção de rota não pode ser confundida com um retorno ao neoliberalismo da banca. E muito menos com uma política externa que volte a vislumbrar uma reinserção subalterna no cenário internacional. Por tudo isso, o que se delineia no país vizinho é preocupante demais como já observou Marco Aurélio Weissheimer em O alerta que vem da Argentina.
Os locautes dos setores agroexportadores não podem ser vistos apenas como resultado de uma equação fiscal complicada. A natureza da paralisação patronal, por não aceitar a redução dos seus lucros, é, antes de qualquer coisa, uma ação política que atinge a classe trabalhadora urbana com desabastecimento e elevação de preços. Pede-se, em especial aos setores de esquerda, que não percam o foco de quem é o real adversário a ser combatido.
Manifestações como a da Frente Obrero Socialista (FOS), corrente trostskista que segue o pensamento de Nahuel Moreno, beiram a insanidade política. Ao afirmar que "foi correto nos colocarmos contra os dois (governo e ruralistas) e chamar os trabalhadores da cidade e do campo a unirem-se em torno a um programa operário para garantir a alimentação", os morenistas parecem não ter aprendido que do gueto não se faz revolução. É, quando muito, um atalho curto que leva a alamedas de cemitérios ou a presídios mais próximos.
Cortes nas estradas e “caçarolaços” nas classes médias das cidades evocam um passado tão recente que talvez a melhor saída, a mais sensata, seja parafrasear Terêncio, o grande dramaturgo romano: Nada do que é latino me é estranho. Precisamos redobrar a atenção. Lidamos com derrotados que costumam vencer ao primeiro cochilo da crítica.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro.
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