“A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral”.
Walter Benjamin
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O “Estado de Exceção” é o meio através do qual o ordenamento jurídico legaliza sua própria suspensão. Este meio, o “Estado de Exceção”, está presente na maioria dos ordenamentos jurídicos, inclusive no brasileiro, constituindo pode-se dizer um paradigma – um padrão lógico – de fundamentação do ordenamento jurídico na modernidade ocidental. Este padrão foi criado em 1791 sob o nome de “estado de sítio”, estabelecendo a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em “casos extremos” e aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e aos portos militares.
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Todavia já em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, na Suíça, na Itália, no Reino Unido e nos Estados Unidos, que serão aplicados, durante os séculos XIX e XX, em situações variadas de emergência política ou econômica. O caso mais recente dessa lógica do estado de exceção foi obra do governo francês que, em 2005, como resposta às manifestações de descontentamento social nas periferias das grandes cidades, colocou o país em situação de emergência.
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Giorgio Agambem compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. O que explicaria por que “a declaração do estado exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais.
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Outro exemplo recente dessa lógica do estado de exceção foi obra do governo alemão, em 2007, durante a cúpula dos G8 Heiligendamm, um local pouco habitado mas logisticamente fácil de se proteger, onde foi construída uma cerca de segurança em torno da área e em torno desta cerca foi criada mais uma “zona de direitos especiais” permitindo que os direitos de liberdade de reunião e a liberdade de circulação pudessem ser limitados “legalmente”. Uma unidade especial ou uma espécie de autoridade especial (Kavala) da polícia foi criada, na qual todas as autoridades governamentais (em um intercâmbio internacional intensivo) cooperam e que recebeu todas as tarefas da polícia. A “Kavala” se transformou em uma autoridade superior com atuação autônoma, na qual a separação entre a polícia civil e a militar, entre as unidades federais e estaduais e entre o serviço secreto e a polícia desapareceu. “Todas as exigências de separação e princípio de separação de poderes que constitucionalmente segundo a Lei Fundamental [Constituição] deveriam evitar medidas excessivas do poder executivo e da polícia foram evitadas” (Donat, 2007, 45). Todavia, estas foram registradas na Lei Fundamental devido às experiências do fascismo, justamente para se evitar a formação de um aparato policial descontrolado. A Kavala assumiu a liderança, não somente no planejamento, mas também nas “medidas operacionais”. Assim ela também se tornou destinatário para qualquer direito de reunião. E sempre atuou conforme a sua própria “previsão de risco antiterrorista”. Quem quisesse permanecer na área definida como zona de risco ou quisesse fazer uso do seu direito de reunião, interferiria de forma geral na concepção de segurança tornando-se terrorista e inimigo em potencial. A posteriori foi constatado que em nenhum momento houve algum risco concreto de ataques terroristas. Mesmo assim, essa “previsão de risco” também se tornou uma diretriz para a justiça (a qual, segundo os princípios do Estado de Direito é/deveria ser independente): essas novas autoridades não só suspenderam a separação entre a polícia e a jurisdição, mas a Kavala também foi a instância competente a descrever em seus “relatórios de situação” a verdade aos juízes/ juízas – com todas as conseqüências que isso acarretaria para a liberdade de reunião, a proteção de legal de medidas da polícia e ações do processo penal. Outra novidade foi o fato da polícia ou a Kavala preparar e publicar autonomamente comunicados de imprensa ofensivos. Estes eram caracterizados por mensagens incorretas e previsões de risco enganosas, o que por sua vez esquentou muito o clima público.
[2]
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Portanto, as “democracias” ocidentais substituíram progressivamente a declaração do “estado de sítio” por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo, como vimos na França em 2005 e na Alemanha em 2007. Tal generalização ocorre de forma mais intensa a partir de 11 de setembro de 2001 (com os atentados contra as torres gêmeas de Nova Iorque e o edifício do Pentágono em Washington), a ponto de inaugurar, para Mikel Berraondo López
[3], uma quarta
[4] etapa na história dos direitos humanos, etapa esta apenas iniciada.
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A partir deste momento ocorreu um retrocesso no respeito aos direitos humanos, que pelo visto, já se generalizou e supõe um estancamento muito perigoso do processo internacional de aceitação, respeito e gozo dos direitos humanos. Como conseqüência dos atentados, e devido a implicação de organizações fundamentalistas islâmicas em sua realização, iniciou-se uma cruzada internacional contra o terrorismo e contra o mundo islâmico, acusado de ser o protetor e impulsionador das redes internacionais de terrorismo. Os Estados Unidos consolidou, se é possível, seu papel de promotor de justiça internacional, e o princípio da segurança converteu-se no eixo fundamental dos direitos humanos... A partir do 11 de setembro a proteção à segurança elevou-se acima do resto dos direitos humanos, relegando o exercício de todos eles a existência de uma situação de segurança total. Limitou-se drasticamente o exercício de direitos como a liberdade e outros direitos como a presunção de inocência - está transformou-se de tal modo que em alguns países como os Estados Unidos, existe agora, em seu lugar, a presunção de culpa, que permite realizar detenções e juízos arbitrários, contra cidadãos árabes ou que tenham traços muçulmanos
[5].
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A transformação do “princípio da segurança” no eixo fundamental dos direitos humanos, fato generalizado de forma sem precedentes na história recente da humanidade, em substituição da “declaração do estado de exceção”, com o pretexto de combate ao terrorismo, também pode ser verificada no Brasil, com especial ênfase no Rio Grande do Sul (RS), nos anos de 2007 e 2008, onde movimentos sociais opositores do modelo neoliberal do governo estadual ou apenas do modelo neodesenvolvimentista do governo federal, são qualificados como terroristas
[6] [7] [8].
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A generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo no RS pode ser vista em ações e omissões do Ministério Público Estadual e Federal, em decisões e omissões do Poder Judiciário e em ações dos órgãos de segurança do governo estadual.
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As ações do Ministério Público Estadual do RS (MPE-RS) neste sentido iniciam em setembro de 2007 quando, em nome do zelo “pela segurança pública”, solicitou - e poder judiciário deferiu - medida liminar contra o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a FARSUL
[9], determinando que os mesmos se abstivessem de ir a Coqueiros do Sul e fossem impedidos de ingressar na “República de Carazinho”
[10]. A justificativa para a ação judicial de interdito proibitório da comarca era evitar conflito entre os sem-terra - que se deslocavam para a região em três marchas com cerca de mil pessoas vindo de diferentes regiões do estado - e os ruralistas. Ao coibir “as duas partes” do conflito o promotor tentou mostrar-se “imparcial”, “sem lado”
[11]. O pedido foi instruído com documentos “sigilosos” da Brigada Militar – relatórios de situação e comunicados de imprensa ofensivos, mesmas técnicas da Kavala alemã - que recomendavam a suspensão das marchas dos sem terra e previam o risco de conflito entre as partes. A juíza do processo era “tão imparcial” que negou vista dos documentos “sigilosos” usados no processo pelo promotor, ao advogado do movimento. Dois meses depois da decisão a previsão policial mostrou-se enganosa pois não ocorreu qualquer movimento de ruralistas mas apenas as marchas dos mil sem-terras que foram impedidos de entrar na comarca sob fuzilaria e uso de bombas. A decisão, sem decretar o estado de exceção
[12], reconheceu sitiados os quatro municípios da Comarca, uma área de 2.108 Km2, na qual os sem-terra viram suspensos seu direito de ir e vir e de reunião pacífica.
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O Tribunal de Justiça, apreciando pedido de Habeas Corpus para garantir o direito de ir e vir dos sem terra, confirmou a decisão que criou esta “zona de restrição de direitos”, criando o precedente que seria utilizado novamente sete meses depois, quando em 11 de junho de 2008, cumprindo determinações de seu Conselho Superior, o Ministério Público Estadual ingressou com ação civil pública na “república de Carazinho” e obteve liminar para o despejo 300 famílias sem terra - que reivindicavam a desapropriação por interesse social da “Fazenda Guerra” (8000 hectares) - de dois acampamentos existentes no município de Coqueiros do Sul há mais de dois anos, em áreas de terras particulares cedidas legalmente pelos seus proprietários. O MPE solicitou a medida por entender que “constitui dever do Estado garantir segurança pública aos cidadãos, assim como preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio”
[13]. No dia 17 de junho de 2008 o mesmo MPE ingressou com outras três ações nas Comarcas de São Gabriel, Canoas e Pedro Osório, solicitando “tutela inibitória” para que integrantes do MST “se abstenham de se aproximar, através de marchas, colunas ou outros deslocamentos em massa de sem-terra e demais integrantes de movimentos sociais, ... a uma distância inferior a dois quilômetros dos limites territoriais” da “Fazenda Southall” (13.267 hectares), da “Fazenda Granja Nenê” (1.246 hectares) e da “Fazenda Palma” (3.029 hectares). Os quatro pedidos foram deferidos pelo poder judiciário determinando “às forças policiais... para que mantenham constante monitoramento das ações dos réus que tencionarem se dirigir para a Fazenda ... impedindo-os, se for o caso, com a interceptação das marchas, colunas ou outros deslocamentos em massa de sem-terra e demais integrantes de movimentos sociais ... de chegar a uma distância mínima de dois quilômetros dos limites territoriais externos...” e fixou multa de diária de R$10.000,00 para o caso de descumprimento da decisão. Foram interpostos os recursos de “agravo de instrumento” contra as decisões, que até o momento não foram julgados. Na prática, as ações criaram zonas especiais onde o direito de ir e vir, direito de reunião e manifestação estão suspensos, nos mesmos moldes do efetuado pela polícia alemã em 2007 durante as manifestações contra a reunião do G8 em Heiligendamm.
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A concessão de “interditos proibitórios” e agora de “tutelas inibitórias” têm sido o principal mecanismo utilizado pelas empresas e proprietários, para estabelecer “exceções” ao direito de reunião e livre manifestação; os quais têm sido deferidos com desvio de finalidade pelo Poder Judiciário, que tem tomado posição em favor do direito de propriedade e em detrimento do direito de reunião, nos casos de conflito entre ambos. Sobre o tema é ilustrativa a situação da Federação dos empregados em estabelecimentos bancários do RS (representante de 38 sindicatos) que emitiu comunicado informando que na paralisação de 08 de outubro de 2008, não turbaria a posse ou esbulharia qualquer agência bancária. Mesmo assim vários bancos ingressaram com interditos proibitórios deferidos pelo Poder Judiciário. A Federação denunciou a utilização desnecessária de interditos proibitórios pelos bancos como forma de coibir o exercício do direito de greve e de livre divulgação do movimento
[14]. Existem interditos proibitórios sentenciados em 2008, proibindo protestos dos atingidos pela hidrelétrica de Foz do Chapecó, nas comarcas de Planalto (RS) e São Carlos (SC), sob pena de multas de R$5.000,00 e R$50.000,00 diários. O judiciário estadual de Panambi (RS), em 2007, deferiu interdito contra o Sindicato dos Metalúrgicos daquela cidade que realizava campanha salarial na empresa Tromink. Em todos estes processos, o judiciário autorizou o uso da força pela polícia militar, para “fazer valer” as decisões.
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Outro fato significativo da generalização do paradigma da segurança como técnica normal de governo no RS ocorreu com a atuação conjunta da Polícia Civil (60 agentes), Polícia Militar (800 policiais), Polícia Federal, Corpo de Bombeiros e Polícia Rodoviária Estadual, cumprindo “mandado” deferido pelo Poder Judiciário e com parecer favorável do MPE, para busca e apreensão de duzentos reais, uma máquina fotográfica e um anel no local onde mais de mil e quinhentas pessoas, sem terras, deputados, vereadores, professores, estudantes, sindicalistas e apoiadores da reforma agrária, participavam do XXIV Congresso Estadual do MST-RS, na comunidade da Coanol, no assentamento da Fazenda Annoni, onde, nos anos 80, surgiu o MST. Um exército de mil homens e aproximadamente cem viaturas, helicópteros, cavalaria, cães, cercaram todos acessos à localidade que ficou isolada o dia inteiro. Desde as seis horas da manhã ninguém pode entrar ou sair do local. Todas as atividades programadas para o último dia, quando seriam tomadas as principais deliberações, foram suspensas. Os presentes tentaram fazer valer seu direito de reunião; o exército queria ingressar e identificar criminalmente todos participantes. No final da tarde cerca de 200 policiais ingressaram no local e revistaram os ônibus e alojamentos: nada foi encontrado. A ação policial terminou às dezessete horas do dia 17 de janeiro e acabou com o congresso. O ano: 2008, quarenta anos após a dissolução do Congresso da UNE (União Nacional de Estudantes) - em Ibiúna - pela ditadura militar brasileira.
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Capítulo dois: o AI5 e a IO6
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“Eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”
[15].
Peter Sloterdijk
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Tamanha é a generalização do paradigma da segurança como técnica normal de governo que chegou a se afirmar que na luta contra o terrorismo “não há regras”
[16]. Divergindo em parte dos Estados Unidos, o Estado do Rio Grande do Sul para alcançar eficiência no aparelho repressor estatal, normatizou as “regras” da “generalização da exceção”. As mesmas constam da “INSTRUÇÃO OPERACIONAL Nº 6-1” (IO6), de 06 de outubro de 2007, que pode ser comparada, resguardadas as devidas proporções, ao “ATO INSTITUCIONAL Nº 5”, de 13 de dezembro de 1968, (AI-5)
[17].
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O AI-5, do General A. COSTA E SILVA
[18], “concedeu” ao “Presidente da República”, depois deste ouvir o Conselho de Segurança Nacional, o poder de suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos, suspensão que importava, entre outras, a proibição de atividades ou manifestação sobre o assunto de natureza política, e aplicação, quando necessária da medida de segurança de “liberdade vigiada” e a “proibição de freqüentar determinados lugares”, estando excluída de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o Ato.
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A IO6, do Coronel Nilson Nobre Bueno
[19], concedeu aos Comandantes Regionais da Brigada Militar do RS, o poder de suspender atividades políticas de movimentos sociais, suspensão que importa, entre outras, a proibição de realizar atos ou protestos em órgãos públicos e áreas privadas, e aplicação, da medida de segurança de “liberdade vigiada” consistente na identificação de lideranças de movimentos sociais, e ainda, “proibição de freqüentar determinados lugares”, mesmo sem ordem judicial para tanto ou sem queixa crime do proprietário de área privada.
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Os fatores utilizados como pretexto pelas Forças Armadas, para desencadearem em 1968 a nova escalada repressiva com o AI-5 (denúncias contra o governo, crescimento das manifestações de ruas e surgimento de grupos armados
[20]) são similares aos utilizados como pretexto pelo Estado Maior da BM para desencadear em 2007 nova escalada repressiva contra movimentos sociais. A finalidade da IO-6 (consta de seu item 1) é regular a ação policial nas seguintes situações:
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a) Ações de grupos, organizados ou não, que venham a desencadear ocupação ou invasão em massa de áreas públicas e ou privadas;
b) Recrudescimento da violência e da criminalidade no campo,
c) Esgotamento da capacidade de negociação das autoridades constituídas.
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A IO-6 é identifica que “as invasões de áreas urbanas ou rurais, públicas ou privadas, inclusive rodovias e suas faixas de domínio, constituem, no Brasil, praxe tendente a, na maior parte das vezes, forçar os governos a aprofundar a reforma agrária. Em outras, constituem manobras estratégicas, com fins de natureza política...” (item 3) e propõe no seu conjunto de dispositivos, medidas para impedir que estas atividades políticas aconteçam, prevendo ainda que todos os seus dispositivos “aplicam-se ... às ações de movimentos sociais em geral em ocupações pontuais de caráter reivindicatório ou de protesto” (item 4-j). O item três da instrução (“da execução”) prevê providências que devem ser tomadas em situação de “normalidade”, “iminente ocupação”, “ocupação concretizada” e de “requisição de força policial para apoio no cumprimento de mandado judicial de reintegração”.
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Em situação de “normalidade” (item 3-b) os comandos deverão manter cadastro atualizado das áreas rurais e urbanas, públicas e particulares, que possam ser consideradas possíveis locais de ocupação, onde conste os dados de acampamentos existentes na região, identificação de possíveis lideranças ou entidades envolvidas em cada acampamento ou assentamento, dados de prédios públicos (citando como exemplo o INCRA e o Ministério da Fazenda) e que possam ser invadidos “de maneira súbita” e ainda dados de prédios e áreas de terras urbanas que possam ser ocupados pelos movimentos sociais em geral.
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Quando ocorrer “situação de eminente ocupação” os comandos deverão instalar barreiras policiais nas áreas de acesso aos locais que seriam ocupados e “impedir a concretização” do ato político (a ocupação) – itens 03-c-1 e 03-c-2 da IO6. A instrução atribui aos comandos regionais da Brigada Militar, ao terem conhecimento do “deslocamento de grande número de pessoas, a pé ou em veículos” rumo a “destino conhecido”, o poder de decidir se os mesmos possuem “ânimo de invasão”, o que caracterizaria a “situação de eminente ocupação” (item 03-c) e autorizaria emprego de barreiras e uso da força para impedi-los de promover seu ato político. Portanto, como ocorreu com a Kavala na Alemanha, a própria Brigada é a destinatária da norma que institui uma política de polícia preventiva, visando impedir a realização de protestos políticos (que seriam os atos de ocupação do MST, como a própria instrução reconhece, e outros protestos sejam de estudantes, professores, do movimento sindical ou social). A Brigada Militar caracterizou como “situação de eminente ocupação”, fato ocorrido em 24 de julho de 2008 quando sem terras marcharam até a sede do INCRA em Porto Alegre exigindo o cumprimento do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado com o MPF para o assentamento de mil famílias até abril de 2008 (e que não havia sido e ainda não foi cumprido). A brigada militar “interceptou os sem-terra, revistou-os e acompanhou o grupo até a sede regional do INCRA... Lá, para entrar no prédio, foi obtida uma autorização por escrito da superintendência do instituto, caso contrário, a BM não deixaria”, e, no dia 28 de julho, um grupo “saiu para participar de um encontro na Ufrgs (sobre a criminalização do movimento) e a Brigada Militar decidiu que os que deixaram o prédio do Incra não poderiam retornar”
[21].
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Na “situação de ocupação concretizada”, os comandos devem “Isolar a área, conforme ... o art. 6º do CPP”, depois “confirmar a propriedade do imóvel” e então “gerenciar ... a saída voluntária dos invasores” mesmo que não haja ordem judicial para isso (itens 3-d-1, 3-d-2 e 3-d-7 da IO6). Este capítulo da instrução cria uma exceção ao previsto na legislação brasileira, que pode ser caracterizada como desvio de finalidade ou abuso de poder. O ordenamento jurídico brasileiro estabelece que nos casos de esbulho possessório de áreas privadas
[22], quando não há emprego de violência contra pessoa, o Estado (polícia, promotores e juízes) somente intervém mediante queixa, ou seja, o sistema jurídico estabelece que a polícia militar só pode agir depois de provocada pelo proprietário, jamais podendo agir “preventivamente”
[23]. No aspecto civil, a polícia só pode proceder a reintegração de posse de áreas particulares ocupadas, depois de determinado pelo judiciário
[24]. De outra parte, a brigada jamais poderia “isolar”
[25] áreas privadas nos termos do art. 6º do Código de Processo Penal pois este trata do “inquérito policial” a ser realizado pela polícia civil e refere-se ao isolamento do “local do crime” após a saída e retirada de pessoas para evitar que provas sejam destruídas
[26]. Um dos exemplos da aplicação deste dispositivo ocorreu em 04 de junho de 2008 numa ocupação de uma área particular de um hectare por 27 – quatro crianças – sem terra, na localidade de Águas Claras, em Viamão – RS. Cem policiais militares do Batalhão de Operações Especiais, contando até helicóptero, foram acionados e contiveram a ocupação
[27]. Segundo os sem-terra, primeiro a área foi isolada, depois a brigada foi atrás do proprietário da área e o fez registrar queixa para dar “legalidade” a operação. Às 15h41min os manifestantes receberam voz de prisão do comandante do 18º BPM. Depois, sob ordens do então subcomandante-geral da BM, Paulo Roberto Mendes “Todos foram cadastrados e tiveram que assinar o termo circunstanciado”
[28]. Outro exemplo ocorreu em acampamento do MST em Gramado dos Loureiros (RS), despejado pela BM em 29 de julho de 2008 das margens da estrada estadual RS324. Segundo afirmado por um proprietário rural em petição judicial a BM lhe procurou para informar que sua propriedade seria alvo de ocupação, motivo pelo qual ingressou com interdito proibitório contra o MST (deferido pela justiça). Segundo os acampados, a BM pressionou o DAER (órgão responsável pela estrada) para ingressar com a reintegração de posse (deferida pela justiça) que autorizou o uso da força e o despejo dos sem terra. Os despejos foram feitos em qualquer tipo de negociação.
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E por fim, nas situações “de execução do mandado para a ação de retirada dos invasores” (item 3-f) a IO-6 estabelece que, se a desocupação for voluntária (item 3-f-1), todos os “invasores” devem ser revistados, identificados criminalmente
[29] e lavrados os boletins de ocorrência, devendo ocorrer a apreensão de materiais ilícitos e a condução a delegacia (item 3-f-1-e); e no caso de “Reintegração compulsória” (item 3-f-2) além da revista, identificação e criminalização, devem ser apreendidos os meios de transporte utilizados na invasão (item 3-f-2-f). Já nas “prescrições diversas” (item 4) a instrução estabelece que na execução do Mandado Judicial deverá ser estabelecido posto de comando para onde deverão ser conduzidos os políticos que se deslocarem ao local, a imprensa e outros profissionais não-envolvidos diretamente na execução da medida “a fim de que não afetem o curso normal das atividades” (item 4-b) e determina a implementação e manutenção de um Livro de Controle das situações existentes no Estado que deve integrar a página da PM-3 na Intranet (item 4-i).
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A IO6 generaliza o paradigma da segurança como técnica normal de governo no RS transformando o estado de exceção em regra geral do sistema. A partir da sua aplicação tem ocorrido a identificação criminal massiva de ativistas e a manutenção de “arquivos sigilosos” com dados de militantes e integrantes de movimentos sociais. A constituição federal brasileira garante ao cidadão civilmente identificado o direito de não ser submetido a identificação criminal (art. 5º, LVIII). Idêntico é o teor da lei federal n.º 10.054/2000 que dispõe sobre a identificação criminal e estabelece que “o preso em flagrante delito, o indiciado em inquérito policial, aquele que pratica infração penal de menor gravidade (...), assim como aqueles contra os quais tenha sido expedido mandado de prisão judicial, desde que não identificados civilmente, serão submetidos à identificação criminal, inclusive pelo processo datiloscópico e fotográfico” (art. 1º) e que “a prova de identificação civil far-se-á mediante apresentação de documento de identidade reconhecido pela legislação” (art. 2º)
[30]. A lei não autoriza a criação e manutenção de banco de dados “sigilosos”
[31] como os que têm sido mantidos pela PM2 gaúcha e a utilização dos mesmos em processos judiciais como tem feito o MPE que utilizou nas ações civis públicas já referidas dois destes “relatórios”, um chamado “relação dos integrantes da via campesina que atuam nas ações dos movimentos sociais nos últimos anos” com os nomes de cerca de quinhentos supostos integrantes do MST e do MMC (Movimento de Mulheres Camponesas); e o outro chamado “principais lideranças que atuaram na marcha do MST em direção a Coqueiros do Sul em 2007” com fotos de sete supostos líderes da marcha, onde, embaixo da foto pode ler-se “FUNÇÃO: LIDERANÇA” e em anexo a “ficha policial” pregressa de cada um deles.
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Uma análise menos atenta da IO6 e o desconhecimento de como ela têm sido aplicada pode induzir a não ver-se nada de “anormal” na mesma, pois ela – a parte do exposto - estabelece também o “uso de disuasão através de oficial com perfil de negociador de alto risco” (item 3-c-2), determina pela prioridade em estabelecer contatos com autoridades buscando apoio político para a boa condução dos casos (item 3-d-6) e para gerenciar pela saída voluntária e pacífica dos invasores (item 3-d-7), fala em esclarecer os demandados da intenção da BM numa retirada pacífica (item 3-f-2-b), em providenciar pela segurança de todos envolvidos (3-f-2-j), prestar atendimento aos feridos (3-f-2-g), utilizar ME femininas em mulheres (4-f), prevê um extenso embasamento legal na Constituição Federal e Estadual, legislação federal e estadual (item 2). Estes dispositivos da norma são hipócritas
[32] pois com eles tenta-se “mascarar” a instrução com imagens democráticos, aparências de estado de direito, fundadas na lei, constituindo o “texto ideológico” da IO6 e que esconde seu texto real, o “texto recalcado”, que é instituição de uma polícia política preventiva, para atuar na repressão a movimentos sociais, como se mostrou e continuará sendo mostrado neste texto; como está sendo provado pela forma como e contra quem a instrução tem sido usada na prática, na concretude da vida real e dos fatos, alguns dos quais trazemos à baila, só para ilustrar:
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- 28 de novembro de 2007: 300 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados que ocupavam antiga usina da Corlac são despejados, sem negociação, com uso de força e são obrigados a “marchar” até a delegacia;
- 04 de Março de 2008: mulheres da Via Campesina que ocupavam a Fazenda Tarumã, de propriedade da Stora Enso, sem negociação, são despejadas com “ações de força” e “ações de inquietação”, antes da ordem judicial ou queixa do proprietário. Pelo menos 50 mulheres ficaram feridas, entre elas duas grávidas que tiveram ameaça de aborto devido aos golpes de cacetetes. Uma sem terra foi presa. Todas as mulheres foram identificadas, tiveram suas carteiras de identidade tomadas pela BM, foram separadas das crianças e dos poucos homens. Um vídeo com imagens de agressões foi confiscado ilegalmente pela Brigada Militar.
- 14 de março de 2008: sete professores e um estudante são presos e algemados durante manifestação no Centro Administrativo em Porto Alegre.
- 20 de Maio de 2008: a BM impede que estudantes realizem protesto na rampa de acesso da Secretaria Estadual de Educação, em Porto Alegre. Um estudante foi detido temporariamente.
- 10 de Junho de 2008: cinco agricultores ficaram feridos durante ocupação da Bunge em Passo Fundo durante a jornada nacional contra o agronegócio. A brigada isolou a área mesmo sem haver ordem de reintegração de posse ou queixa do proprietário. Não houve negociação; apenas bombas de gás e bala de borracha, estas, disparadas na cabeça dos manifestantes.
- 11 de Junho de 2008: doze pessoas feridas (um gravemente, com hemorragia interna devido às cacetadas que levou) e outros 12 foram presos durante protesto contra transnacionais e corrupção no governo Yeda. A marcha foi impedida de se deslocar pelas ruas de Porto Alegre.
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Capítulo três: o silêncio da (in)justiça
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O tamanho da virulência indica o tamanho do combate
Hegel
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Este capítulo destina-se apenas a destacar que a situação que vem ocorrendo no Rio Grande do Sul só é possível de ocorrer quando existe uma omissão múltipla e generalizada dos mecanismos e instituições do Estado de Direito criados para fiscalizar e coibir os abusos das forças policiais, dentre os quais se destaca o MP. Em vários episódios estabeleceu-se a cumplicidade entre os responsáveis pela lei e a ilegalidade, entre a autoridade e o crime. O que temos visto é que o poder judiciário e o Ministério Público
[33] - especialmente os que atuam e possuem jurisdição sobre áreas de conflito como Carazinho, Canoas, Pedro Osório e São Gabriel, caso do MST, ou Nonoai e Planalto – caso dos atingidos por barragens - para não fazermos uma generalização grosseira de “toda” instituição - estão preferindo defender os denunciados, na maioria dos casos omitindo-se de seu papel de fiscalizar e punir os abusos policiais (no caso do MPE), quando não tem agido contra os denunciantes, sendo cúmplices de crimes, como no caso da utilização dos “relatórios secretos” da BM pelo MPE. Tudo isso nos faz lembrar novamente da ditadura militar brasileira que terminou em 1985, época de amar o Brasil como ele estava ou deixá-lo, quando a Lei de Segurança Nacional era empregada com “beneplácito do tribunal” para perseguir operários, jornalistas estudantes e religiosos por fatos que nada têm a ver com a segurança do Estado. O processo contra os metalúrgicos de São Paulo por realização de greve pacífica sem qualquer conotação política foi apenas um escândalo. É verdade que o tribunal terminou declarando a incompetência da Justiça Militar, mas permitiu, por tempo intolerável, que aquele processo vicejasse. Os líderes metalúrgicos foram submetidos à prisão cautelar e depois à prisão preventiva, pondo-se escandalosamente a Justiça Militar do lado dos patrões
[34].
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Final
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Poderíamos afirmar que a década de maior “tolerância” para com as pressões populares, sindicais, ecologistas, indígenas, etc, naturais numa sociedade democrática – e que coincidiu com a existência de uma ordem constitucional democrática – está sendo solapada pela ideologia do excepcionalismo que parece se afirmar como regra geral das democracias ocidentais
[35].
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Os novos liberais, cinicamente assumidos ou hipócritamente mascarados, os que preferem a injustiça à desordem, que querem perpetuar nossas sociedades divididas em classes, mas não admitem que hajam conflitos nela; todos vinculam-se a tradição liberal de democracia, a qual, segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, lembrando Espinosa, vê a democracia como “o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais”, o que redunda na tentativa de conter os conflitos sociais. Esquecem, segundo a filósofa, que “democracia, mais que respeito às leis estabelecidas, é conflito”. A democracia “é a única forma da política que considera o conflito legítimo”. Segundo Espinosa a boa política se dá quando a esperança (“uma alegria inconstante nascida da idéia de uma coisa futura ou passada”) vence o medo (“uma tristeza inconstante da idéia de uma coisa futura ou passada”) e permite que a concórdia supere a discórdia entre os homens. Mas não qualquer concórdia, há que ser uma concórdia democrática, ou seja, um regime que os cidadãos não estejam submetidos a nenhum poder tirânico. “A paz não é a simples ausência de guerra. Uma cidade na qual a paz depende da inércia dos súditos deve mais corretamente ser chamada de solidão que de cidade”. Daí a possibilidade de unir a idéia de concórdia com a possibilidade de conflito, própria à democracia. “Em vez de segurança (que, para Espinosa, seria a alegria da esperança sem ameaça do medo), o poder de um só reintroduz a contingência num nível mais profundo, porque tudo parece depender da vontade caprichosa de um só. Isso produz, sem cessar, a insegurança e a instabilidade”
[36].
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Neste contexto, de hegemonia da concepção liberal de democracia no RS, de prevalência da ordem sobre a justiça, generalização do paradigma da segurança como técnica normal de governo e da tentativa de sufocar os conflitos sociais resultantes da nossa sociedade dividia em classes, devemos defender, como defendia Heleno Fragoso na época da ditadura militar, que o que realmente proporciona segurança e que caracteriza um regime democrático, é a máxima aplicação possível da esfera de liberdade e de tolerância com os que se opõem ao sistema dominante, exortando ao poder judiciário e ao ministério público para que não façam parte apenas do aparelho repressivo que se põe à serviço da classe dominante, estado de exceção em que vivemos e que é na verdade regra geral.
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Leandro Gaspar Scalabrin
Outubro de 2008
Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo
Advogado do MST, MAB e MMC
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[1] SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo : Boitempo, 2008, p. 87-8.
[2] Exposição “A criminalização de movimentos sociais na Alemanha – um resumo”, apresentada por Corinna Genschel (Centro de contatos de movimentos sociais da fração DIE LINKE no Parlamento Alemão e no Comitê para os Direitos Civis e a Democracia) e Peer Stolle (Associação de Advogadas e Advogados Republicanos, RAV), durante o “Seminário internacional sobre a criminalização de movimentos sociais e protestos sociais”, realizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e pelo Instituto Rosa Luxemburgo, entre 18 e 20 de junho de 2008, em Guararema - SP, Brasil.
[3] Los Derechos Humanos ante el nuevo milenio. Evolucion y retos para la nueva era de la seguridad. In: Mikel Berraondo López. Los derechos humanos en la globalización. Mecanismos de garantía y protección, Alberdanía, San Sebastián, 2004 (tradução livre).
[4] “Así pues, hablaríamos de una primera etapa normativa, en la que principalmente se generan tratados y convenciones internacionales sobre derechos humanos; de una segunda etapa de construcción institucional, en la que además de continuar con la labor normativa se crean toda una serie de instituciones para la protección de los derechos humanos; de una tercera etapa posterior a la guerra fría, caracterizada por una inicial despolitización de los derechos humanos; y por último una cuarta etapa de seguridad internacional, en la que el principio de la seguridad se convierte en el motor principal de los derechos humanos, relegando el ejercicio de la mayoría de ellos bajo la necesidad colectiva de asegurar la seguridad.”.LÓPEZ, op. cit.
[5] A presução de culpa matou o brasileiro Jean Charles, de traços não tão muçulmanos assim, no Reino Unido, onde a Scotland Yard primeiro atirou para depois ver se o mesmo era um terrorista com uma bomba.
[6] Dois documentos da Brigada Militar, um de 2006 (Situação do MST na região norte do RS) e outro de 2007 (relatório de inteligência “reservado” n. 1124-100-2007, elaborado pelo serviço secreto da BM - a PM2), este do Estado Maior, caracteriza a Via Campesina – em especial o MST - como movimentos que deixaram de realizar atos típicos de reivindicação social para realizar ações criminosas, taticamente organizadas como se fossem operações paramilitares. O Ministério Público Estadual acolheu esta tese num processo “confidencial” (processo administrativo n.º 16315-09.00/07-9) onde chegou a ser aprovado o encaminhamento de ações judiciais para dissolver o MST – tendo havido recuo da instituição por causa da repercussão sobre a proposta. O Ministério Público Federal de Carazinho enquadrou os acampamentos, marchas e atos do MST realizados entre 2004 e 2006 nos artigos 16, 17 e 20 da Lei de Segurança Nacional que tratam dos “integrantes de grupamentos” que tenham por objetivo a mudança do Estado de Direito com uso de violência e de atos de terrorismo por inconformismo político.
[7] A luta dos povos indígenas pela demarcação e homologação das terras indígenas na região amazônica, particularmente dos territórios Yanomami e Raposa Serra do Sol, que resultou na demarcação da reserva Raposa Serra do Sol pelo governo federal, para os militares brasileiros, constitui “uma ameaça a soberania nacional” e tem se posicionado contra as mesmas. MALDOS, Paulo. Sombras da ditadura militar pairam sobre Raposa Serra do Sol. Brasília : CIMI, 2008 (mimeo).
[8] Sobre a caracterização de movimentos sociais como “organizações terroristas” é ilustrativo o fato, embora quase pitoresco, de que apenas em 20 de julho de 2008 o Congresso Nacional Africano – CNA, e Nelson Mandela terem sido retirados da lista de terroristas da CIA, 15 anos depois de Mandela ter recebido o Prêmio Nobel da Paz.
[9] Federação representativa dos sindicatos rurais, ou seja, dos proprietários de terra.
[10] Alusão à Comarca de Carazinho, no estado do Rio Grande do Sul, jurisdição que abrange os Municípios de Carazinho, Almirante Tamandaré do Sul, Coqueiros do Sul e Santo Antônio do Planalto.
[11] A imparcialidade de juízes e promotores da “República de Carazinho” lembra a de Le Chapelier. Em 14 de abril de 1791, a União Fraterna dos Trabalhadores em Construção de Paris tentam firmar acordo com os empreiteiros sobre a fixação de um salário mínimo. Os empresários não fazem acordo e afirmam que o movimento pretende “impor pela força seus próprios pedidos” constituindo “um atentado aos direitos do homem e à liberdade dos indivíduos”. Os trabalhadores apresentam então uma petição à municipalidade para que esta intervenha a seu favor. O prefeito de Paris publica manifesto onde acusa os que participam do movimento de “refratários à lei, inimigos da liberdade e puníveis como perturbadores da paz e da ordem pública”. Em 14 de junho o deputado Le Chapelier apresenta projeto de lei à Assembléia Nacional acolhendo as pretensões dos empresários de que o direito à liberdade de reunião, sancionada pela Declaração dos Direitos do homem, não permitia os cidadãos pertencentes a determinadas profissões que se reúnam tendo em vista seus pretensos interesses comuns. A lei Le Chapelier, aprovada em 17 de junho de 1791, proíbe “imparcialmente” quer “associações operárias” para provocar aumento no salário quer as “coalizões patronais” para reduzi-los. O exemplo da França é seguido pela Inglaterra em 1800. Os motivos dessas leis são os interesses de classe; a burguesia francesa, depois de ter conquistado o poder com o auxílio do Quarto Estado, não pretende dividir com este as vantagens da nova posição. Para os liberais, a liberdade proclamada pela Declaração dos Direitos do Homem é o direito de propriedade e de livre concorrência. Para os operários, liberdade é o direito de ter uma vida mais digna. (BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. 4. ed., São Paulo : Perspectiva, 2006, p. 19-21). Os liberais franceses, assim como os liberais carazinhenses tomaram posição da defesa da “ordem” e da propriedade, embora manifestem “imparcialidade” em suas petições. A Constituição Federal fala, em seu art. 3º, I, da justiça social como objetivo fundamental da República brasileira, mas fala também em legalidade, tanto em seu art. 5º, II, como no caput do art. 37. Há casos, porém, em que ordem e justiça, enquanto valores, mostram-se incompatíveis e somos obrigados a tomar uma posição, para um ou para outro lado nesse embate. A coluna do escritor gaúcho Luis Fernando Veríssimo, publicada no dia 03/06/08 no jornal O GLOBO, faz boa reflexão sobre este conflito axiológico, lembrando que Goethe disse preferir a injustiça à desordem. Veríssimo afirma que “quem acha que desordem é pior do que injustiça tem do que se queixar, e a que recorrer”. Esse é o caso dos latifundiários integrantes da FARSUL que se regozijaram com o interdito proibitório da comarca que lhes foi extramente favorável, pois tem de que se queixar e a que recorrer, tendo interesse apenas em manter as coisas como estão: não precisam se manifestar. Situação diferente é a dos sem terra que precisam se organizar em movimento e realizar protestos para tentar mudar de mãos alguns grãos de terra brasileiros.
[12] Outra decisão semelhante a esta foi proferida em 10 de agosto de 2007 pelo juiz da comarca de Itapecerica da Serra – SP, que concedeu liminar proibindo o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de realizar acampamentos em áreas públicas do Município (ruas, praças, prédios). A inicial foi instruída com o decreto municipal n. 1980 de 18-05-07 que decreta a existência de situação anormal provocada por ações de desordem pública, social e política toda a extensão geográfica do Município.
[13] A vertente carazinhense corre no rio identificado por López, pois coloca a “segurança pública” acima dos outros direitos humanos contra os quais se punha em conflito, o direito a reforma agrária e o direito de moradia das famílias que acabaram despejadas e ficaram sem ter onde dormir por vários dias, quando choveu e ocorreram as temperaturas mais frias do ano. Um idoso faleceu por problemas de saúde depois do despejo.
[14] Interditos Proibitórios Desnecessários. Correio do Povo : Porto Alegre, sábado, 04 de outubro de 2008, p. 7.
[15] O autor, partindo da famosa frase usada por Marx a fim de traçar os contornos do desconhecimento ideológico “Eles não sabem, mas o fazem”, chega a conclusão de que no cinismo “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo”. O cinismo seria a razão de nossa época, dita pós-ideológica, onde o poder aprendeu a rir de si mesmo, o que lhe permitiu revelar o segredo de seu funcionamento e continuar a funcionar como tal. “O capitalismo nada oferece a crer, o cinismo é sua moralidade”. Safatle, op. cit., p. 69 e 92.
[16] O presidente George W. Bush em uma conferência de imprensa em 17 de setembro de 2001 em resposta a uma questão que dizia respeito as táticas das forças americanas na guerra ao terrorismo afirmou: "Não há regras" (there are no rules). Apud MAIONE DE SOUZA, Emerson. Ordem e Justiça na Sociedade Internacional Pós-11 De Setembro. I Simpósio Em Relações Internacionais Do Programa De Pós-Graduação Em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007.
[17] Com o AI-5 o governo teve amparo “legal” para, entre outras medidas: fechar o congresso, cassar mandatos, suspender direitos políticos, demitir compulsoriamente funcionários públicos, demitir juízes, decretar estado de sítio sem consultar outros poderes, confiscar bens, suspender a garantia ao hábeas corpus, proibir que o AI-5 fosse questionado na justiça (FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro : Record, 2005, p. 179-180). A proporção a ser resguardada é que a IO-6, como se verá, não prevê nenhuma destas medidas.
[18] Então ditador brasileiro que tomou o poder através do golpe de 1º de abril de 1964.
[19] Então Comandante Geral do Estado Maior da Brigada Militar, nomeado pela governadora do Estado do Rio Grande do Sul.
[20] A consolidação do Estado autoritário. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 60-64.
[21] Invasão com Licença. Rogério Mendelski.O Nacional, Passo Fundo, segunda-feira, 04 de agosto de 2008, p. 2.
[22] Art. 161, II do Código Penal, tipo penal no qual são enquadradas as ocupações e protestos realizados pelo movimento sindical ou social para reivindicar direitos.
[23] Nestes casos, de ocupações de áreas particulares, a polícia só poderia agir “de ofício” se houvesse violência contra pessoa – o que a polícia não tem como saber antes da ocupação se concretizar! Mesmo no caso de violência, como a polícia poderá saber da ocorrência antes de alguém a comunicar?
[24] O sistema jurídico brasileiro permite que o proprietário – com seus próprios meios – realize desforço imediato para reaver a posse, não o permitindo todavia que as forças policias assim o façam.
[25] Este “isolamento”, na prática, tem consistido na prisão temporária de todos os manifestantes no local do protesto, cercando o mesmo com enormes contingentes policiais dos batalhões de choque, cortando alimentação e água.
[26] A norma da brigada até parece piada de português: a lei diz “isolar” o “local do crime” para que ninguém mexa em nada; a brigada isola o “local do crime” com todo mundo dentro. Na realidade, tentou-se encontrar um fundamento legal para a ação abusiva, isto fica claro quando se vê na IO6 que a finalidade do isolamento é evitar “que um maior contingente de invasores se agregue ao já existente” (item 3-d-1).
[27] Cem PMs contêm ocupação de 27 sem-terra em Viamão. Correio do Povo, Porto Alegre, 04-06-08.
[28] BM desocupa área invadida pelo MST. Zero Hora, Porto Alegre, 04.06.08.
[29] Novamente a norma cita como base legal o art. 6º, do código de processo penal, que é inaplicável à situação pretendida pois trata da identificação de indiciado pela autoridade da polícia civil pelo processo datiloscópico, e não da elaboração de cadastro de integrantes e lideranças de movimentos sociais para fim de repressão das organizações como vem sendo feito pela brigada.
[30] O Supremo Tribunal de Justiça tem ratificado os termos literais da lei. STJ - RHC 12965 (DF - 5ª T. - Rel. Min. Felix Fischer - DJU 10.11.2003) e RHC 12969 (DF - 5ª T. - Rel. Min. Felix Fischer - DJU 20.09.2004).
[31] Os arquivos secretos assemelham-se aqueles mantidos pelo DOPS na ditadura militar.
[32] A hipocrisia “prova seu respeito pelo dever e pela virtude tomando-lhes a aparência e utilizando-os como máscara para sua própria consciência, assim como para a consciência alheia” (Hegel). A hipocrisia é uma das múltiplas máscaras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse por meio da universalidade do dever; máscara que cai mediante uma crítica capaz de desvelar os verdadeiros interesses por trás da aparência de universalidade, confrontado assim o “texto ideológico” com o “texto recalcado” (Safatle, op. cit., p. 29).
[33] A parcialidade da instituição e dos meios de comunicação podem ser percebidos pois existem inúmeras “forças tarefas” do MPE: combate as drogas, corrupção e ao crime organizado, defesa do meio ambiente, patrimônio histórico, mas nenhuma contra a criminalização de movimentos sociais (mesmo após todas denúncias apresentadas). Tratamento diferente é dado à outras denúncias apresentadas contra os movimentos sociais: “ONGs entram na lista.... (o) Ministério Público de Contas ... encaminhou ... representação solicitando investigação do uso de recurso públicos por ONGs lidadas à reforma agrária e à reassentamentos no Estado” – Correio do Povo, Porto Alegre, sábado 04-10-08, p. 2.
[34] Heleno Cláudio Fragoso. Para uma interpretação democrática da Lei de Segurança Nacional.
[35] Ideologia que guia tanto a política externa e de segurança dos EUA depois de 11 de setembro de 2001 conforme Tim Dunne (Escola inglesa de relações internacionais. Apud MAIONE DE SOUZA, Emerson. Ordem e Justiça na Sociedade Internacional Pós-11 De Setembro. I Simpósio Em Relações Internacionais Do Programa De Pós-Graduação Em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) 12 a 14 de novembro de 2007); como a política de segurança pública do RS depois de 2007 - quando Yeda Rorato Crusius assumiu a função pública de Governadora Estadual.
[36] Chauí defende veia conflituosa da democracia. Folha de São Paulo, São Paulo, E-4, Ilustrada, sexta-feira, 25 de agosto de 2006.