A piscina e a universidade
Por Selvino Heck
Val toma coragem e entra pela primeira vez na piscina da mansão da família de classe média alta onde é empregada doméstica há mais de década. Enquanto bate com pés e pernas na água rasa da piscina (que foi esvaziada porque nela a filha tinha entrado, empurrada pelo filho do dono e amigos), Val tira o celular do bolso e telefona para a filha Jéssica, desejando feliz Ano Novo – 'Sabe filha onde estou na agora?' – e, toda orgulhosa e feliz por sua coragem, faz 'chap, chap' na água, para a filha ouvir o barulho inédito.
Essa história e cenas são do filme 'Que Horas ela Volta?'. Val, a empregada doméstica, veio de Pernambuco, onde deixou uma filha. Jéssica, sua filha, vem inesperadamente a São Paulo para fazer vestibular de arquitetura na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), e recorre à mãe na sua chegada à cidade grande (fica alguns dias com mamãe, que dorme na casa dos patrões, até achar um lugar seu para ficar). Fazia dez anos que mãe e filha não se viam, não se encontravam, quase desconhecidas uma da outra. Val, submissa empregada doméstica, Jéssica, jovem vestibulanda, senhora do seu destino.
A entrada na piscina era o sinal da libertação. Estava terminando a submissão de quem não podia sentar à mesa dos patrões, de quem dormia no quarto da empregada, de quem não podia mexer no sorvete exclusivo do filho do patrão, mesmo que lhe fizesse todos os agrados durante todo tempo, ele, no cotidiano, mais filho da empregada que de sua mãe biológica.
A piscina é o desejo e prazer secretos dos quais a empregada não podia usufruir. Uma das primeiras recomendações de Val para Jéssica, quando esta chega a São Paulo, é de nunca entrar na piscina. 'Não é para o nosso bico.'
Assim como a Universidade nunca foi o espaço, embora desejado, das filhas das empregadas domésticas. Ainda mais a celebrada FAU! Aliás, no filme, é fantástica a forma como Val, a empregada doméstica, conta para a patroa a nota da filha no vestibular – 68, 68, fala ela da nota da filha, como se fosse algo mágico ou extra-terrestre. Enquanto o filho da patroa, consolado pela empregada, não é aprovado e vai fazer um estágio na Austrália.
Val 'invade' a piscina. Jéssica 'invade' a Universidade, que nunca esteve aberta para os filhos da periferia, como a piscina sempre esteve proibida para os empregados.
No Fórum Social de Educação Popular, em janeiro, em Porto Alegre, no Encontro Educação Popular e Universidades: Experiências e Desafios, Boaventura de Sousa Santos, da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), disse: "Educar é construir consciências que representam o mundo como seu, representar o mundo como próprio."
Val, que saiu de Pernambuco para sobreviver, submeteu-se a um mundo ao qual apenas servia docilmente, sem questionar sua ordem e sua hierarquia, porque estas eram as possibilidades colocadas. Uns mandam, outros obedecem. Uns são mais, outros são menos. Um mundo que não era seu, embora o construísse todos os dias para os outros.
Jéssica teve acesso à escola em Pernambuco, onde um professor de história (não por acaso Pernambuco, terra de Paulo Freire, não por acaso um educador popular) abriu-lhe os olhos da consciência social. Quando lhe perguntam sobre o porquê de fazer vestibular para arquitetura, ela responde que é para melhorar o mundo.
Os dois mundos, o de Val e o de Jéssica, se encontram, confrontam-se e descobrem a possibilidade histórica de dialogar. Jéssica passa no vestibular. Val pede demissão do emprego. Acontece uma síntese, uma nova síntese libertadora.
As transformações dos últimos anos no Brasil estão precisando de uma nova síntese, Seus personagens principais, o povo que só trabalhava e mal sobrevivia, que só trabalhava para os outros e não tinha direitos reconhecidos, que só recebia salário no final do mês, quando recebia salário e quando tinha emprego. E o povo trabalhador que tem direitos, não só à casa, mas também aos benefícios de uma vida digna, direito à cultura, à escola e à Universidade, direito ao trabalho e ao lazer andando de avião pela primeira vez.
A história não para felizmente. Os tempos são de mudança. Para não haver retorno ao neoliberalismo conservador e concentrador de renda, o futuro e o novo precisam aproveitar os avanços das últimas décadas na América Latina, incluir o protagonismo dos novos sujeitos de direitos, como Jéssica e Val, numa educação emancipatória, desenvolver o projeto de mudança a partir das práticas e experiências solidárias acontecidas e vividas e da consciência que trazem junto.
A piscina e a Universidade devem estar acessíveis a todas e todos, se o outro mundo possível for de igualdade, justiça social, distribuição da renda, da riqueza e do poder. Se assim não for, não é 'o outro mundo possível'.
O Fórum Social Temático, o Fórum Social de Educação Popular, o Fórum Mundial de Educação, a Tenda Paulo Freire, tantos outros eventos e mobilizações acontecidos em Porto Alegre, são a (re)afirmação, no contexto histórico de uma Val e de uma Jéssica, de um outro mundo possível.
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Selvino Heck é Diretor do Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã Secretaria Nacional de Articulação Social Secretaria de Governo da Presidência da República
Tags: Cinema, educação, Jéssia, Que Horas Ela Volta?, Val
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