Jacques Távora Alfonsin
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A crise político-administrativa por que passa o nosso Estado, deflagrada por uma conversa telefônica mantida entre dois integrantes do primeiro escalão do governo, gravada e publicada por um deles, dá chance a que se examine o respeito devido pela administração pública ao princípio jurídico de moralidade, previsto no art. 37 da Constituição Federal.
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Se a moral privada, aquela que mal ultrapassa os limites da conduta individual própria de cada cidadã/o, se justifica pela necessidade incontestável de ela/e bem viver sua felicidade pessoal, respeitando esse mesmo valor nas/os outras/os, a pública tem o elenco todo das obrigações morais multiplicado ao mais alto grau, pois, num Estado que se pretenda democrático e de direito, é ela que tem a obrigação de garantir a possibilidade de convivência das demais, para tanto equipada até com a sanção de leis.
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O problema é que aí entram todas as nunca bem resolvidas questões derivadas das relações entre direito e moral, as quais não deixam de se refletir sobre as responsabilidades pessoais que os administradores públicos devem à sociedade, justamente pela sua condição de administradores e não de proprietários do Estado. Essa pessoa jurídica, como se sabe, somente se reconhece como existente, de maneira muito resumida, quando é dotada de povo, território e governo. Em termos de governo, por isso mesmo, o dever moral de prestar contas ao povo, somente pode ter avaliada a sua lisura, como é óbvio, através dos seus administradores. Moral, aí, é identificada como virtude. Analisada a conversa denunciada sob enfoque ético, então, convém seja ela examinada, de acordo com o que a mesma revela de moralidade ou imoralidade no relacionamento que a administração do Poder Público estadual mantém com aqueles três elementos.
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Tomado o primeiro e principal sujeito dessa composição, o povo que vive neste território e que elegeu democraticamente este governo, é de indiscutível clareza a infidelidade moral que a dita conversa revela, pois ela ofende sua soberania, quando admite desvio do poder e do dinheiro públicos para fins alheios aos do seu titular; ofende sua cidadania, quando esquece que a origem da investidura de qualquer condutor político da administração pública somente se legitima e justifica pelo voto; ofende sua dignidade e seus direitos humanos fundamentais, quando inverte os fins dos mandatos políticos, ignorando que “público” é sinônimo de comum, sem autorização social para ser tratado como privado, coisa sujeita ao interesse imediatista e oportunista das conveniências de ocasião.
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Se os desvios de recursos públicos, então, serviram para sustentar campanhas eleitorais, o povo foi legal e moralmente roubado por aqueles administradores, que faltaram com o seu dever legal e moral de vigilância sobre dinheiro alheio, pelos partidos que tiverem se locupletado com essa manobra ilícita, fazendo da disputa por poder um fim em si, e por quem quer que tenha viabilizado esse procedimento ilícito.
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A indignação ética que essa ilicitude provoca se acentua muito na medida em que a conversa faz passar como “normal”, “rotineiro” um tal crime, cuja imoralidade causa maior revolta quando se compara um tal desperdício com as prioridades que o Estado tem escolhido, em flagrante desinteresse pelas urgências que afligem o povo, o verdadeiro dono do dinheiro desviado.
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Isso aparece de maneira mais visível ainda, quando a atual administração pública do Estado, enfrenta o povo em suas relações com o seu território.
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Desde sua posse, ela não descansou enquanto não entregou a Fepam às facilidades exigidas pelas indústrias transnacionais do papel e da celulose, sob o argumento terrorista de que somente por aí seria possível desenvolver-se a metade sul do Rio Grande. É como se o povo que passa até fome por lá não tivesse sido assim vitimado, exatamente pela exploração latifundiária dos ricos que ali exploram as suas terras, fazendo-o credor de uma reforma agrária injustificável e permanentemente prorrogada. Entre o dever moral de promoção econômico-social dessa gente historicamente pobre e excluída por um desenvolvimento econômico e social saudável, ecologicamente sustentado, o governo do nosso Estado prefere o produtivismo (terra e seus frutos como meras mercadorias) à produtividade (preservação da terra e da natureza, função social da propriedade privada). Sendo um “bem de uso comum do povo”, como diz o art. 225 da Constituição Federal, o meio-ambiente apropriado à natureza e à gente do Rio Grande não pode ser irremediavelmente comprometido, por maior que as perspectivas econômicas de lucro das empresas estrangeiras queiram passar por progresso aquilo de que elas mesmas pretendam se apropriar. Não há ecologista sério que não esteja temendo pelo nosso futuro ambiental e alimentar com esse tipo de política predatória e entreguista, cuja imoralidade nem se dá ao trabalho de disfarçar o modo como burla a Constituição Federal, na nossa faixa de fronteira, criando empresas brasileiras laranjas que façam passar por legais as suas aquisições de terra nessa parte do nosso território.
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Em contexto de moral política, Norberto Bobbio indicou saída para esse povo assim vitimado. Analisando o pensamento de Gramsci, afirmou ele que o povo organizado em defesa da sua dignidade e dos seus direitos humanos fundamentais, é um sujeito ético-político capaz de construir a sua própria emancipação. Esse conselho tem sido seguido por multidões pobres e trabalhadoras, procurando defender-se por conta própria, sim, da injustiça social que padecem, por conta de um modelo de economia, de política, e de direito, moral e jurídicamente infiel ao próprio poder que foi delegado democraticamente à atual administração publica do Estado.
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Seus protestos, todavia, têm sido reprimidos com um abuso de autoridade tão arrogante e prepotente como o do poder econômico que pretende defender e garantir. A segurança pública do nosso Estado, pelas palavras diárias do recentemente indicado comandante da Brigada Militar, de pública não tem nada, pois já escolheu claramente de que lado está. Recuperou a concepção historicamente atrasada da palavra território, que era considerado o lugar onde podia se espalhar o terror. Pré julga todo aquele povo como delinqüente, fazendo cair sobre ele, do modo mais humilhante, estúpido e violento, o peso desproporcional das suas armas, sempre sob a excusa de que precisa manter a ordem, e está agindo dentro da lei. Não hesita em fazer juízo de valor sobre as/os pobres trabalhadoras/es, como se quem abusa da autoridade tivesse autoridade moral para isso.
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Ignoram, tanto ele como o governo ao qual obedece, que a imoralidade desses gestos está solenemente condenada pela mesma lei que eles apregoam cumprir. A Constituição Federal, sem falar em vários dos seus dispositivos que sustentam a juridicidade dessas manifestações populares de protesto, previu soberania, cidadania e dignidade humana como fundamentos da própria República, em seu primeiro artigo. No 3º, entre seus objetivos “fundamentais” estão a erradicação da pobreza e da marginalização, além da promoção do bem de todos. O Código Penal, por sua vez, em seu art. 350, capitula como abuso de poder o do funcionário que “submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou constrangimento não autorizado em lei.” Pelo visto, para essa autoridade, erradicação da pobreza se faz batendo nas/os pobres.
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O que mais ignoram a mesma autoridade e o seu (!) governo, porém, é que a dignidade humana das suas vítimas é um princípio constitucional supra positivo o que significa tanto a lei como o Estado existirem em função dela e não ela em função da lei. A “moralidade” do atual governo do Estado, portanto, pelo menos no que se refere aos seus deveres de depositário dos bens e dos dinheiros públicos, bem como da segurança devida ao povo, não tem a moralidade por princípio. Àquela a quem ele obedece não é a do art. 37 da Constituição Federal.
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Na época de Jesus Cristo, quem se apregoava guardião da moralidade pública eram os fariseus e o “mestres da lei”, partidários ferrenhos de uma obediência cega às leis, desde que seus privilégios jamais fossem ameaçados pela aplicação delas. Não é de hoje, portanto, que uma ferrenha defesa das leis pode ocultar muita injustiça. Num Estado como o nosso que se proclama cristão, não só por muitos dos seus políticos, mas por grande parte da mídia que, se não apóia, pelo menos silencia sobre as políticas públicas acima denunciadas, talvez conviesse questionar-se em que medida toda a criminalização da pobreza, todo o escândalo que causa a sua luta por emancipação, não cabem na grave censura que esse tipo de comportamento recebeu daquele pobre nazareno, justamente pelo muito que a hipocrisia farisaica esconde da sua torpe e opressora imoralidade: “... amarram fardos pesados e os põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos.” (Mt. 23, 4).
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