Enquanto os países ocidentais sentem na pele os riscos do desmonte das instituições democráticas – basta observar os casos de Brasil e Estados Unidos, com as passagens de Jair Bolsonaro (PL) e Donald Trump pelo poder -, o quase sempre tranquilo Uruguai parece olhar o fenômeno como se fosse imune a ele.
É com esse típico clima ameno que os uruguaios vão às urnas no próximo domingo, dia 27, para definir o seu próximo presidente.
Já no passado recente, as mudanças de eixo no poder – da centro-direita para a centro-esquerda, e vice-versa – não representaram, necessariamente, transformações profundas nas bases sociais e políticas do Uruguai. Pelo contrário: a continuidade em certas políticas, apesar das mudanças naturais no poder, é uma marca do país vizinho.
Isso não acontece por acaso. Tradicionalmente, o país de cerca de 3,5 milhões de habitantes costuma ser visto como um bastião democrático na América Latina. Índices democráticos usados como referência para a literatura – como os da revista The Economist e os da organização Latinobarómetro – costumam apontar o Uruguai como a democracia mais sólida da região.
No pleito deste ano, a esquerda uruguaia poderá voltar ao poder. É isso, pelo menos, o que apontam as principais pesquisas de intenção de voto no país vizinho. O principal nome do campo ideológico é o de Yamandú Orsi, ex-prefeito da pequena cidade de Canelones, que é apoiado pelo ex-presidente José Mujica [2010-2015].
Mujica, aos 89 anos e se recuperando de um tratamento contra o câncer, chegou a fazer uma participação em um ato de campanha, nesta semana, em Montevidéu. Bastante emocional, o ex-presidente fez um discurso em tom de despedida da vida política, dizendo que "os melhores dirigentes são aqueles que deixam um grupo que os supera com vantagem", em referência a Orsi.
Orsi lidera uma corrida que poderá terminar no próximo domingo, mas, caso vá para o segundo turno, a união de forças de centro-direita do país pode atrapalhar os seus planos. Algo, aliás, semelhante ao que aconteceu no pleito de 2019, que elegeu Luis Lacalle Pou como novo presidente.
Lacalle Pou não pode se candidatar ao cargo, uma vez que, no Uruguai, os mandatos presidenciais duram cinco anos e não há reeleição. Neste ano, o atual mandatário apoia o seu ex-secretário da Presidência, Álvaro Delgado.
Em caso de eventual segundo turno entre Delgado e Orsi, o destino dos votos de um outro candidato poderá ser importante para definir o pleito: os do ultraliberal Andrés Ojeda, que tem pouco mais de 10% das preferências. Caso seja necessário, o segundo turno está marcado para o próximo dia 24 de novembro.
Reforma da Previdência
Não é o caso de dizer que a votação do próximo domingo deverá tratar de um tema tão ou mais importante do que o próximo presidente, mas, certamente, os uruguaios terão que lidar com um assunto de primeira ordem: a aceitação ou não de uma proposta de reforma da Previdência.
A ideia foi colocada na mesa pela principal central sindical do Uruguai, a PIT-CNT. Por isso, a próxima votação eleitoral também virá com a votação de um plebiscito sobre a reforma.
Basicamente, o texto propõe três mudanças centrais. A primeira é fazer com que a idade mínima para a aposentadoria no país vizinho seja de 60 anos, reduzindo a idade mínima atual, que é de 65 anos.
A segunda é fazer coincidir o valor mínimo da aposentadoria ao salário mínimo, o que ainda não é uma realidade por lá. O mínimo no Uruguai é de 22,2 mil pesos mensais - cerca de 583 dólares, atualmente.
A terceira é pôr fim aos fundos privados de Previdência, que, no Uruguai, complementam o sistema público. No país, eles são conhecidos como Afaps e administram as aposentadorias de cerca de 1,6 milhão de trabalhadores.
A proposta é uma resposta, ainda que tardia, à reforma da Previdência aprovada no ano passado, quando, por exemplo, a idade mínima subiu de 60 para 65 anos.
Que Lacalle Pou seja contra a proposta atual - ele diz que "o que se propõe é perigoso" e faria "o sistema ser insustentável" - não é nenhuma grande surpresa, mas o grande debate sobre o tema está sendo tratado no amplo bloco de centro-esquerda uruguaio, conhecido como Frente Ampla.
O grupo até concorda com a necessidade de se reformar o sistema, mas não há consenso sobre como isso pode ser feito. Mesmo líderes históricos como Mujica reconhecem que o fato de o Uruguai ter a população mais velha do continente exige ajustes no sistema. E que, na prática, a aprovação da reforma proposta exigiria uma outra reforma no futuro breve, o que seria inviável.
O Uruguai tem uma expectativa de vida de 78,1 anos, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Já há alguns anos, a população do país deixou de crescer, algo que deve acontecer no Brasil apenas em algumas décadas. Nessa marcha, os custos previdenciários crescem e deverão seguir crescendo.
A campanha de Yamandú Orsi, por exemplo, tem evitado tratar da proposta. Mas as forças do país movimentam a campanha, tentando fazer com que ela seja conhecida pela população. Segundo as principais pesquisas do Uruguai, cerca de um terço dos eleitores desconhece a proposta de reforma.
Em meio a tudo isso, os levantamentos também mostram a baixa probabilidade de que a reforma seja aprovada. Para isso, ela precisa ter, pelo menos, 50% dos votos. Mas, pelas pesquisas, o apoio gira na casa dos 30%.
Tudo passará, pelo menos até o próximo final de semana, pela capacidade de convencimento dos grupos favoráveis à reforma. Apesar da serenidade e da pouca afeição a grandes arroubos, mudanças de última hora podem acontecer no Uruguai. |