Marcos Bagno
Ontem li uma postagem que dizia assim: «pode soar estranho, mas o certo é 'trazido'». Para quem estuda a mudança linguística esse é um indício bem interessante. Já faz algum tempo que muitas pessoas vêm usando 'trago' como particípio irregular do verbo 'trazer': «Foi bom você ter trago os exames anteriores», me disse um fisioterapeuta. Um dos fenômenos que provocam a mudança linguística, entre vários outros, é a hipercorreção (ou ultracorreção ou hiperurbanismo): a pessoa não domina completamente determinada regra gramatical e, na ânsia por não cometer erro, acaba extrapolando a regra e gerando formas hipercorretas, "excessivamente corretas", ou seja, erradas. Um exemplo clássico é o "houveram problemas". O verbo "haver" é impessoal, nunca se flexiona no plural, mas a pessoa, tendo em mente a noção de concordância, aplica a regra onde não deveria. Isso também vale para "tratam-se de problemas sérios": a locução "trata-se de" nunca deve ir para o plural. No caso do 'trago', faz-se uma associação com outros particípios irregulares ('pego', 'pago', 'gasto' etc.) que têm a forma do verbo conjugado ('eu pego', 'eu pago', 'eu gasto'), de modo que de 'trazer' deve ser 'trago'. Talvez esteja em ação aí também o fato de outros verbos em '-zer' terem particípio irregular (dizer-dito, fazer-feito).
Uma historinha que sempre conto é a do particípio passado 'pego'. No célebre dicionário Caldas Aulete, edição brasileira de 1958, encontrei essa pérola: «pêgo - Bras. part. irreg. de 'pegar' [Só os incultos usam essa forma]». 'Bras.' é abreviação de "brasileirismo", um modo que os dicionaristas antigos encontravam de acusar a gente de usar formas "erradas". Hoje em dia, o particípio 'pego' é usado sem susto e sem remorso por todas as pessoas "cultas". O que aconteceu?
O uso frequente de uma forma inovadora acaba por difundir essa forma a tal ponto que, em muitos casos, a forma antiga desaparece (ou sobrevive como fóssil linguístico em comunidades específicas, como é o caso de 'fruita' e 'luita', em lugar de 'fruta' e 'luta', que ouvimos em variedades rurais e que são as formas mais antigas dessas palavras). Mas não basta que o uso se expanda simplesmente. É preciso que a forma inovadora, geralmente surgida na fala de "incultos", seja pouco a pouco incorporada no uso das camadas médias e médias altas da população. Quando essas camadas adotam a forma inovadora, caixão e vela: a forma antiga passa a ser vista como errada e é cuidadosamente evitada pelas pessoas "cultas". Por ora, muitas pessoas "cultas" condenam o particípio 'trago'. Mas se uma pessoa letrada que tem acesso a esta rede digital (rede 'social' é piada de mau gosto) já acha que outras pessoas podem considerar "estranha" a forma regular 'trazido', é porque um início de princípio de começo de mudança pode estar despontando. Daqui a 50 anos, quando eu for a desmemória de um esquecimento, é provável que as e os linguistas se divirtam ao ler antigas declarações bombásticas de que a forma 'trago' é coisa de "ignorantes" e "beócios" (como já li certa vez). Quem (sobre)viver verá.
*Texto publicado na rede digital "facebook".